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A moça na foto

A jovem na foto está quase sorrindo, olhando o futuro com a mesma surpresa do observador incógnito  que olha para ela, tanto tempo depois.  O cabelo solto sugere uma dança suave com a brisa que talvez entrasse pela janela que não aparece na foto. Nada em seu rosto indica seus sentimentos, se é feliz ou triste, se posou para a foto por vontade própria ou se apenas foi surpreendida pelo fotógrafo intruso naquele momento e lugar.
 
 
Poderia se chamar Ailez ou Zelia, talvez apenas Maria, nunca se sabe.  Pôs a foto em um envelope, procurou o endereço em um dos poucos catálogos telefônicos que ainda distribuem nos condomínios.  Escreveu com cuidado  o nome e o destino,  mas não pôs o remetente. Foi  a um dos poucos postos do correio ainda existentes na cidade, selou, jogou na caixa apropriada e foi almoçar no MacDonald, antes que esse desapareça também da face da terra.
 
 
No céu, uma estrela nova nasceu, uma estrela velha morreu, engolfada no tal buraco negro para onde vamos todos nós. Também finito é o destino das estrelas. Nos correios o envelope da foto é recebido e catalogado, distribuído por região de acordo com o CPF – mais um número que nos impõem, esse com muitos usos. Exigido para usar o cartão de crédito nos postos de gasolina, para pedir pizza pelo telefone,  para tirar fita de vídeo nas máquinas automáticas dos supermercados.
 
 
Outra  máquina automática, a de classificação da correspondência a ser expedida,  rejeita o envelope sem remetente, sem piedade. A funcionária o pega, examina, vê que o valor do selo está correto e manda para o setor de segurança. O envelope passa pelo detector de armas químicas, aciona o sinal verde – sem conteúdo danoso ou suspeito –  e é jogado na esteira que desemboca em outros nichos, indo engordar os sacolões jogados sem cuidado nos caminhões que o levarão a seu destino final. 
 
 
Um dia depois o envelope chega a outra agência dos correios, em outra cidade, onde segue os trâmites burocráticos até a caixa postal número 230009, rua E R 23 T, Bairro 5-A, conforme a catalogação dos correios. Somos hoje um baú de números!  Há dias ninguém retira as remessas diárias, e o envelope se espreme entre avisos bancários e contas de luz e telefone, propaganda de supermercados e ofertas de novos cartões de crédito, de seguros de vida e sepulturas vitalícias. Ou melhor, “mortalícias”.
 
 
Chove e a casa é velha, precisa de reparos. A água se infiltra pelas paredes por causa das calhas entupidas, e lentamente escorre para a caixa postal. Cinco dias depois alguém se lembra de checar a correspondência já meio mofada na caixa dos correios. Com nojo, corre ligeiramente os olhos pelo amontoado de papéis úmidos, retira pouca coisa que pode ser importante, e joga o resto na lixeira. O envelope da foto, sem remetente, sem dó, é o primeiro a ser descartado.
 
 
A chuva parou e o sol brilha num céu azul de esperanças.  Não sei porque dizem que a esperança é verde, pois decretaram que verde é a inveja. Quem vai saber?  Melhor aproveitar  o sol, que esse também não há de estar lá no alto para sempre. Mas por que nos preocuparmos?  A moça na foto, a pessoa que mandou a foto,  e quem não a recebeu, não estarão  aqui para ver.

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