Não faz tanto tempo assim, fazia-se a apologia do dolce far niente – Por que trabalhar se você pode viver de proventos, dormindo na sombra? Ou se, mesmo faltando os proventos, você não quer? Nas monarquias de outrora, enquanto os pobres trabalhavam e pagavam impostos, a corte se refestelava em fofocas e os monarcas enganavam o tédio mandando cortar cabeças. Hoje, embora os pobres ainda trabalhem mais, até os ricos precisam defender sua posição no ranking dos mais-ricos.
Embora esteja mais difícil sobreviver mantendo-se à margem da correria geral que nos impôs Adão, para muitos trabalhar ainda é uma questão de princípio moral. É o caso do Dodico, que ao abrir os olhos e emitir o primeiro choro na sala de parto decidiu que não veio a esse mundo para pagar os pecados de alguma vida que havia deixado para trás. Querer, porém, nem sempre é poder.
Manter princípios morais pode dar mais trabalho que arregaçar as mangas e ser chofer de ônibus. Tudo começou com a própria mãe, que exigiu ajuda nas tarefas domésticas – Dodico, não admito essa preguiça! Mas mãe… Sem mais nem plus, de hoje em diante tu lava os pratos ou não come! E como na hora do jantar os pratos do almoço não estavam lavados, o próprio pai o pôs pra fora de casa, Vai aprender a se virar, moleque!
Verdade que o moleque a essa altura já passava dos 30. Tendo apenas completado o primeiro grau, pai e mãe até que o aguentaram bastante, talvez por ser filho único. Com alguma sorte e boa aparência, Dodico arranjou uma funcionária pública que o acolheu e alimentou. Isso após muita reflexão que tipo de provedora lhe convinha – nem muito feia pra causar desconfiança, nem muito bonita pra arranjar outro pretendente; nem ganhando pouco pra exigir participação nas contas, nem ganhando muito para ser exigente.
Sou avesso a trabalho doméstico, foi logo avisando, e pra mim não precisa cozinhar. Frutas e sanduíches me bastam. Por dez anos Heda o aguentou, mas ver aquele homem bem nutrido dormindo o dia todo na poltrona – nem a televisão ligava, e só comia quando ela voltava do trabalho e lhe preparava um sanduíche – acabou lhe dando nos nervos. Foi internada numa clínica psiquiátrica e Dodico perdeu as benesses.
Outra mantenedora foi logo encontrada, desta vez uma viúva usufruindo boa pensão do falecido. Durou cinco anos, até os filhos da viúva o porem pra correr – Arranja trabalho ou desaparece de vez! Desaparecer de vez era mais fácil e Dodico fez uma análise realística de sua vida – onde estou e para onde vou? Mesmo sem ter que trabalhar, os dois relacionamentos deram muito trabalho e não estava disposto a investir em mais um.
Pra dormir qualquer canto servia, e pra se manter alimentado foi catar moedas nas fontes dos shoppings e praças, e em caixas eletrônicos. Embora exigisse algum esforço, era melhor que limpar mesa de restaurante. Quando os pais morreram lhe deixaram a casa – Muito trabalho pra cuidar, decidiu Dodico. O imóvel onde nasceram o pai e o avô foi vendido, e com o dinheiro Dodico se aposentou do ofício de catador de moedas e manteve os sanduíches diários pro resto da vida.