quarta-feira, janeiro 15, 2025
22.7 C
Vitória
quarta-feira, janeiro 15, 2025
quarta-feira, janeiro 15, 2025

Leia Também:

Arquivo morto

Madalena tem pilhas de papéis na sua frente para reciclar – documentos, declarações, apelações, certidões, revelações, memorandos, etc, etc, todos confidenciais e alguns até comprometedores. O “Evereste” de papéis acumulados durante anos obstrui a pouca paisagem que a janela ainda pode captar, se não estiver chovendo ou se o escritório da frente não fechar as cortinas.
 
As pilhas se multiplicam, competindo lá entre elas em altura e nível de importância. Tudo porque o chefe acumulador de tudo foi exonerado por desvio de verbas e o chefe atual gosta de prateleiras vazias na repartição. Esclarecimento desnecessário: repartição vem de coisa repartida,  partes isoladas mas interligadas ou dependentes de um todo – como por exemplo a máquina administrativa do governo. No atual governo, mais repartida ainda.
 
Sendo um ser ecologicamente antenado, o novo chefe quer, ou melhor, exige, que as folhas sejam estudadas e catalogadas em subpilhas específicas. A: os textos realmente secretos ou reveladores,  para serem sumariamente destruídos;  B: páginas com espaços em branco, não utilizados,  que serão recortados em tamanhos específicos e reutilizados – rascunhos, memorandos, anotações e recados. Desta forma, economiza-se 3,5 mil por mês em Post-it.
 
O arquivo é conhecido na empresa como mar morto. A Bíblia faz muitas referências ao Mar Morto, e nos velhos  tempos das aulas de catecismo, Madalena perdia o sono imaginando como podia um mar estar morto – parado, sem ondas? Hoje em dia seria por excesso de poluição, mas nos tempos bíblicos tinham problemas mais prementes. Talvez cheio  de cadáveres de afogados, ou teria águas venenosas e se algum incauto ali mergulhasse ou caísse, teria morte súbita?
 
Graças ao advento da Internet, hoje ela sabe que o Mar Morto é assim chamado por ser muito salgado. Mais salgado que o mar, dizem. Tanto sal que ali não vicejam peixes nem plantas aquáticas, razão única de ser um mar defunto. No mais, não é bem um mar, mas um lago, e a excessiva salinidade permite que se flutue sobre suas águas. Isso talvez explique como Jesus conseguiu andar sobre as águas, mas não explica porque as pessoas comuns também não andam.
 
Muito ao contrário da ideia infantil de que o mar fosse envenenado pela maldição de algum deus colérico, a região é hoje um dos maiores centros mundiais  para pesquisas e tratamento de saúde. As empresas de cosméticos andam tirando bom proveito. Madalena foi escolhida para a tarefa não apenas por ser pessoa de total confiança, mas principalmente porque seu grande desejo é conhecer o Mar Morto. No raciocínio do chefe,  quem mais apropriado para passar meses naquele local insalubre, na enfadonha tarefa de matar o arquivo morto?
 
Madalena trocou a placa Arquivo Morto na porta pelo nome mais charmoso – Mar Morto.  E ali  passa as horas, que se empilham em dias, meses, anos, recortando papelzinho no tamanho da subpilha devida. Sendo que o motivo de sua sonhada viagem é tratar da artrite, Madalena ali se sente tão à vontade que os sintomas  da doença estão diminuindo. E como não é possível controlar sua tarefa, o que o chefe não sabe é que Madalena não pretende nunca mais deixar seu Mar Morto particular.

Mais Lidas