Ao atribuir o prêmio Nobel de Literatura de 2016 ao cancionista norte-americano Bob Dylan, a Academia de Ciências da Suécia abriu um precedente que bem poderá reconhecer o que o Brasil tem de melhor: a canção popular, na qual brilham dezenas de artistas com história para merecer o Nobel.
Aí estão Caetano, Chico e Gil, setentões como Dylan que enriqueceram o cancioneiro popular com poemas musicados de fama internacional. Isso sem falar Belchior, Geraldo Azevedo, Elomar Figueira de Melo, Renato Teixeira e Lenine, entre outros. E deixando de lados os falecidos como Tom Jobim, Luiz Gonzaga pai e filho, Noel Rosa e Adoniran Barbosa.
Por que somente agora os membros da academia sueca se deram conta da importância da canção popular como eixo da comunicação social no mundo moderno? Eles provavelmente se deram conta de que os livros, no seu formato convencional, estão chovendo no molhado.
Ao longo do século XX, a poesia popular foi difundida sobretudo pelo disco, o rádio, o cinema e a TV – em muitos casos, com aguda estridência, graças à utilização do jabá, nome da propina nos meios radiofônicos e televisivos, expediente inventado nos Estados Unidos há quase 100 anos.
A partir dos anos 1990, com a internet, a canção pop se tornou um dos fenômenos culturais mais intensos da era cibernética, fundindo letras e músicas em discos, filmes, shows de palco e TV.
Vale lembrar que Chico e Caetano poderiam ser premiados até por seus livros. Será que os acadêmicos suecos conhecem “Verdade Tropical” (524 páginas, Cia das Letras, 1997), de Caetano Velloso?
Nessa obra de rara densidade, o poeta-músico baiano contou sua história e escreveu até sobre Bob Dylan (página 272): “Ele é uma figura a um tempo central e à parte no panorama dos anos 60 – e um traço forte do século. Um dos mais impressionantes exemplos da pujança criativa da cultura popular americana, da cultura popular americano tout court. No momento em que os ingleses dominavam o jogo com sua versão do rock’n’roll do lado de lá do Atlântico, do lado de cá Dylan já apresentava o espessamento desse caldo em que Beatles e Rolling Stones beberam, mostrando onde está a nascente e de onde jorra a energia”.
Diante de uma síntese tão generosa sobre o alcance da obra de Bob Dylan, cabe indagar se o próprio astro pop americano, no seu egocentrismo de pop star, seria capaz de escrever algo equivalente sobre Caetano ou sobre Chico Buarque ou Gilberto Gil, três artistas que ficaram ralando na contracultura do subdesenvolvimento latino-americano enquanto o imperialismo ianque sobrevoava o planeta, fazendo espionagem aqui e lançando bombas ali, com apoio de uma parafernália tecnológica que se impõe pela força da grana sobre as outras culturas.
A propósito da influência da canção na cultura moderna, cabe lembrar o lançamento — duas semanas antes do anúncio do Nobel de Literatura de 2016 — do livro “O Alcance da Canção”, editado pela Arquipélago Editorial e organizado pelos professores de literatura Luiz Augusto Fischer e Guto Leite, do Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que criou no início dos anos 1990 a disciplina Canção Popular. Com 354 páginas, o livro contém 22 ensaios sobre diversos aspectos do trabalho de vários “cancionistas” como Noel Rosa, João Gilberto, a milonga, Vitor Ramil, Atahualpa Yupanqui, The Beatles e o próprio Bob Dylan. Os autores são mestres e doutores formados no estudo acadêmico da canção pop.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“Música é uma arte formidável, que a gente pode usar enquanto pratica outra”
Millor Fernandes