Depois de um longo e tenebroso inverno, Clarice volta à terra natal. Muita água passou debaixo da ponte, pensa mas não fala, porque o pai perguntaria qual ponte. Em sendo a cidade uma ilha, são muitas as pontes, assistindo impassíveis ao rolar das águas da vida. Fosse um país sério e já teriam feito um túnel, afinal as distâncias são pequenas, não seria uma obra de desmontar orçamentos públicos.
Mas não se deslocou de Miami em um voo desconfortável e caro para fazer um estudo sobre as pontes de Vitória, que não têm a nobreza da Ponte Fabricio, em Roma, por exemplo – a mais antiga do mundo ainda em uso. Sabe porque o filho mandou um cartão postal. Veio apenas se despedir do pai, que os médicos marcaram data pra morrer. Não tendo sido informado que seus dias estão contados, ele a recebe sorridente e feliz, “A boa filha à casa torna… Olha que se a visse na rua nem reconheceria”.
Sem esperar que ele morra, os filhos já se atracam pela parca herança – uma casa implorando reparos, um lote em Santa Tereza que nunca virou o sítio que ele sonhava, móveis velhos, uma geladeira nova, uma televisão com mais chuviscos que imagens. E mais as velhas ferramentas do antigo ofício de marceneiro, habilidade que os irmão herdaram. A parca aposentadoria morre com ele, e nada mais restará.
Os ditos irmãos a recebem de má vontade, “Ora vejam quem está de volta…” Temem a concorrência. “O que a gringa veio fazer aqui depois de um sumiço de dez anos? Nunca ligou pro pai, não conhece os sobrinhos…” Os manos não sabem, mas quem parte faz opções e tem que arcar com as consequências. É faxineira e vive em relativo conforto, mas não é rica. Em dez anos as economias para a passagem de volta foram se diluindo em outras necessidades – a compra da casa, a faculdade do filho, o tratamento dos dentes…
Explicou aos irmãos que não veio atrás de herança, não precisa daqueles trambeques. Que se entendam lá entre eles e decidam quem fica com quê. Veio ajudar o pai a morrer, depois seguirá seu rumo, de volta ao lugar onde escolheu viver. Não convenceu, e os irmãos continuam a olhá-la de través, desconfiados… “Claro que ela diz isso agora, depois parte pra luta. Afinal, sempre foi mesmo de briga”.
O pai não morreu na data prevista e Clarice vai ficando… prometeu a si mesma que o acompanharia até o fim, mesmo falhando compromissos já agendados. Os amigos de outrora vão se aproximando, “Esqueceu da gente?” Clarice refaz o tempo da ausência, o que ganhou nesses dez anos? O marinheiro americano com quem se casou hoje navega em outros mares; o único filho mora na Itália, o que a prende ainda à terra onde escolheu viver? As freguesas da faxina?
O pai finalmente descansa, que Deus o tenha em sua mansão celeste. Clarice comunica aos irmãos que decidiu ficar…. “Pensa que vai viver às nossas custas?” Explica que não precisa de esmolas, tem suas economias… O aluguel do imóvel de Miami lhe garante o pão de cada dia, depois acha o que fazer. Eles que fiquem com as ferramentas, a tranqueira velha, a geladeira nova. Quem quiser pode até vir morar junto, mas da casa ela não sai.