Desde que cheguei nessa casa meu nome mudou – Coisinha faz isso, Coisinha faz aquilo; Coisinha limpa os banheiros; Coisinha não esquece o lance do menino, tá? Sei que ela não fala por mal, e até me trata direitinho. Pros outros ela fala que sou cria da casa. Com o marido a coisa muda, é Meu bem faz isso, Meu bem faz aquilo; “Meu bem, larga esse celular! Você não está no fórum, que coisa chata!”
O marido é advogado e está sempre pendurado no telefone, “Estou falando com o juiz, Bem”. Pelo tom da voz e pelo tempo que fala, deve ser juíza. Ninguém tem nome na casa. Ele é Meu bem, ela é Bem, o menino fala Mãe e Pai, e todos o chamam de Menino. O advogado eu chamo de Doutor, e a dona eu chamo de Dona. O doutor me chama de Por favor – Por favor, me traz um café, Por favor passa essa camisa. Todo mundo se entende, pra quê nome?.
Não ligo se ela me chama de Coisinha porque onde fui criada meu nome era Imprestável. Quando minha mãe morreu, o juiz me entregou na casa, “Essa vai ser sua família, agora. Se não te tratarem bem, vem falar comigo”. Claro que nunca me trataram bem e mais claro ainda que nunca poderia falar com o tal juiz. Mesmo se fosse, ele me poria em outra casa, com outra família, mas o maltrato seria o mesmo. “Essa imprestável não vale o prato que come”.
Nesse tempo a Dona era vizinha, e um dia me chamou, “Coisinha, estou mudando pra outro bairro, quer vir comigo, cuidar do Menino? Pago o salário e dou folga no domingo. Fico revoltada com o jeito que esse pessoal te trata!” Saí fugida, era menor. Agora trabalho menos e posso ver televisão quando eles tão no trabalho e o Menino tá na escola. Vou buscar, dou o lanche e vemos televisão até eles chegarem. Aí sirvo a janta e enquanto eles ficam vendo a novela, posso ficar na portaria com as outras coisinhas do prédio.
No começo ela tava sempre perguntando, “Qual é seu nome mesmo?” e daí a pouco perguntava de novo. Desistiu. O porteiro me chama de Apartamento 102, e as outras coisinhas me chamam de Garrincha, dizem que é por causa das pernas. As outras coisinhas são a Loura, a Baiana, a Miúda e a Globeleza, que diz ser porta-bandeira de uma escola. O porteiro todo mundo chama de Porteiro, e ele chama todos os donos de Doutor, todas as donas de Madame, e todas as Coisinhas pelo número do apartamento.
A vida aqui é muito melhor que antes, e acho até que já tenho namorado. É o Entregador, que fica um tempão de papo comigo, falando macio e me chamando de Coisinha fofa. As outras coisinhas ficam rindo, “Vai em frente, boba, ele é legal”. O Entregador é legal, mas fica bravo porque nunca respondo quando ele pergunta meu nome, “Seu nome não é Coisinha, mesmo sendo fofinha. Qual é seu nome de verdade?” Tenho vergonha de dizer que esqueci.