Sábado, 27 Abril 2024

Deus no céu, Jurong na terra

 

Para falar da exagerada mobilização da classe política do Estado diante da “ameaça” do estaleiro Jurong sair de Aracruz, começo com uma pergunta: desde quando deixou de existir lobby de políticos em favor de empresários no país, inclusive no Espírito Santo? A exploração do assunto à exaustão, convenhamos, já virou “forçação de barra”. São dias e dias sem virar o disco, e o estaleiro sequer vai mudar de “casa” – antes fosse. Em meio ao oba-oba, a Jurong não poderia estar melhor, com tanta mídia espontânea. A propósito, alguém se lembra de como o empreendimento foi imposto aos capixabas?
 
O “auê” criado em torno da empresa de Cingapura, ao estilo briga pelos royalties, a “Jurong é nossa”, ignora um histórico de irregularidades e atropelos que começou no governo Paulo Hartung (PMDB) e foi abraçado por Renato Casagrande, com unhas e dentes. Mas os aplausos, elogios rasgados e gentilezas à empresa não faz eco no norte do Estado, onde a população passa por poucas e boas. Muito mais poucas do que boas. A Jurong venerada pelos políticos se instala na região sob protestos da comunidade pesqueira, moradores e ambientalistas.
 
Não custa refrescar a memória. Lá atrás, os técnicos do Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema) manifestaram parecer contrário a emissão de licenças ambientais à empresa, em decorrência do que consideraram impactos irreversíveis ao meio ambiente, não passíveis de compensação equivalente. A diretoria do órgão, sempre ela, ignorou completamente o alerta. Passou por cima e estendeu tapete vermelho à Jurong, oferecendo muitos outros benefícios. 
 
A área do estaleiro é de relevância ambiental, motivo pelo qual entidades passaram mais de dez anos reivindicando, sem sucesso, a criação da APA Costas das Algas e o Refúgio de Vida Silvestre (Revis) de Santa Cruz. O processo não andava exatamente porque empresários do Estado e políticos tinham outros interesses na região. Mas quando surgiu a Jurong, tudo aconteceu como num “passe de mágica”. Articulações aqui e em Brasília, pronto, o governo federal liberou a criação das unidades, mas com um detalhe: os limites foram alterados. Era a tal “moeda de troca”.
 
A conta do estaleiro é ainda mais alta, com ameaça ao patrimônio público da União, à medida que tem aval para ocupar praias e áreas de restinga, além das comunidades indígenas Tupinikim e Guarani, pela proximidade com as aldeias. E você acha que a Fundação Nacional do Índio (Funai), cuja missão institucional é a tutela dos índios, foi ouvida durante o processo? Não, não foi.
 
As irregularidades motivaram ações do Ministério Público Federal do Estado (MPF/ES) para anular a licença ambiental. Não deu em nada. A prefeitura de Aracruz doou o terreno para Jurong, também em desacordo com a lei, e o governo do Estado declarou a área de utilidade pública, garantindo a inclusão do estaleiro no rol de beneficiadas com incentivos fiscais, dentro do Programa de Incentivo ao Investimento no Estado (Invest-ES). 
 
De lá pra cá, os afagos à Jurong só aumentaram, com direito à festança no lançamento da pedra fundamental – Casagrande, deputados, prefeitos, vereadores, periquito e papagaio -, alguns favorecimentos a mais, e outras irregularidades – na lista, descumprimento de condicionantes, destruição de restinga, etc, etc e etc. 
 
Outro dia mesmo, circulou um abaixo-assinado proposto por representantes de entidades da sociedade civil e associações de moradores, cobrando a não aprovação do Estudo de Impacto de Vizinhança apresentado pelo estaleiro e a paralisação das obras. Motivo: mais de 30 falhas e impedimento de manifestação dos moradores. 
 
Com tudo isso nas costas, nenhum político do Estado jamais ousou falar um “a” das trapalhadas da Jurong, e olha que não faltaram denúncias e pedidos de providências. E nem nunca irá falar. Quem vai fazer as devidas cobranças, nem que seja pelo mínimo de responsabilidade social, ambiental e econômica, depois de cair de joelhos aos pés da empresa? Digo o mesmo do governo do Estado. A Jurong tem a faca e o queijo na mão, pode botar banca à vontade. 




Manaira Medeiros é especialista em Educação e Gestão Ambiental

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