Quinta, 28 Março 2024

Dia de feira

 

Todo dia era dia de feira, originando os nomes dos dias da semana. Feira hoje acontece uma vez  por semana, mas Jolina vai apenas uma vez por mês.  Se um feriado se intromete em sua rotina, é preciso mudar o dia da feira, mesmo quando tem que alimentar apenas a si mesma. O patrão viaja mais do que fica, e lhe paga para manter a casa limpa, a correspondência e os jornais recolhidos, os cachorros bem alimentados. Ração de primeira, claro.
 
 
Jolina  não altera a agenda  se ele fica ou vai. Se faz a feira quando ele está em casa, continua fazendo  a feira na ausência dele,  e compra os mesmos produtos. Também prepara os mesmos pratos, pra não perder o hábito e por uma espécie de revanche social - o que ele come eu também posso comer.  O dinheiro dele paga as contas,  que o tal é esnobe mas não é pão-duro.
 
 
Indo à feira no dia trocado Jolina encontra Raimundo, que um dia loucamente amou, mas que a deixou por outra com melhor qualificação social  – o pai dela era feirante, enquanto o pai de Jolina era carregador da feira. Coisas da vida, da qual sempre se leva surras, mas tem surra que dói mais que as outras. Agiu num  impulso, talvez pelo susto de revê-lo, talvez porque sempre sonhou com o doce momento da vingança.
 
 
Moro ali no prédio em frente, e aponta o edifício de vidro fumê, elevador panorâmico, porteiro uniformizado na portaria.  Trabalha, você quer dizer... ele tenta corrigir. Trabalhar, eu? Nem pensar! Trabalhar  estraga as unhas. Mostra as mãos bem tratadas, unhas longas e bem pintadas. Foi manicure no passado, e boa profissional nunca perde a classe.  Ele espantadíssimo, Não vai me convidar prum cafezinho?
 
 
Ah, não vai dar! Desliguei da turma de Camaroínha, só me entroso com a elite. Bem nesse momento passa Carminha Belanges, derrubando de chique, puxada  pelos dois cachorrinhos basset. Oi, Jolina, tudo bem? Beníssima, e você? A que passa passou, cumprimenta os serviçais do prédio porque sempre podem ser úteis, mas não espera e nem ouve a resposta. Raimundo mais impressionado ainda,  Devia me agradecer, fiz o favor de te deixar, e olha onde você chegou.
 
 
Tenho nada pra agradecer não, Mundico. Já tava nos planos te deixar, você só facilitou o processo.  Já herdou a barraca do sogro? Eu, trabalhar na feira? Quepegada!  Não cheguei às suas alturas, mas fiz meus progressos.  Sou chofer da prefeitura, ganho uma nota preta enchendo os tanques dos carros oficiais e esvaziando pra revender no paralelo. Num tô rico que nem você, mas pelo menos cresci por meus próprios méritos.
 
 
Parabéns então, e adeus. Ele fica lá parado, ela manda o feirante entregar a compra, não vai carregar sacola na frente dele. A taxa é módica, diz o pequeno aviso na banca. Do elevador panorâmico proibido para os serviçais, Jolina vê Raimundo ainda na calçada, olhando o prédio em frente,  e agradece a Deus os acasos da vida. O patrão é o Secretário dos Transportes; mais uma semana e Raimundo de tal, ex-camioneiro de feira, será ex-chofer da prefeitura.

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