O arcabouço brasileiro, essencialmente escravocrata, revestiu-se no decorrer da história de grossas camadas de autoritarismo, gerando um Estado policialesco contra camadas mais pobres da população, formadas em sua maioria por pretos e mulatos.
Esse Estado violento é ampliado a partir de 1930 e se consolida na ditadura de 1964, construindo um cenário no qual o estímulo à violência é a marca preponderante, que reveste o governo Jair Bolsonaro, como atestam incontáveis atos e declarações formais dos ocupantes do poder, seja em Brasília e também nos estados. Nesta quinta-feira (8), por exemplo, o presidente recebeu em seu gabinete a viúva do torturador Brilhante Ustra, para ele “um herói nacional”.
Em decorrência desse quadro, os direitos humanos passam a não existir e somente por meio de uma reflexão sobre o processo histórico poderá ser explicado o posicionamento de lideranças de setores policiais e o acolhimento da máxima de que “bandido bom é bandido morto”, como disse em discurso, nessa quarta-feira (7), na Assembleia Legislativa, o deputado Capitão Assumção, líder do PSL na Casa. Na mesma fala, o parlamentar se refere aos policiais como “nossos heróis”.
Os registros dos fatos no dia a dia e levantamentos de instituições de pesquisas sinalizam que não é bem assim. Nem todo policial é herói, do mesmo modo que os bandidos não merecem simplesmente ser mortos pela máquina policial, excetuando-se as situações de confronto armado direto.
Em contrapartida, as situações de confronto geram outros questionamentos que remetem às origens do Estado brasileiro, às oportunidades de emprego e renda e à meritocracia endeusada pelas classes sociais privilegiadas. Nesses ambientes o autoritarismo tem lugar cativo, por meio de várias formas de violência e de humilhação às classes menos favorecidas, que estimulam o ódio e a violência, engrossando os índices de criminalidade.
O fato é que o “Estado policial se opõe ao Estado de Direito e à democracia”, como escreveu o jurista francês Raymond Carré de Malberg, ao analisar a vivência democrática na passagem do século XIX para o XX. O Brasil vive atualmente nesse cenário, consolidado desde a derrubada da presidente Dilma Rousseff, em 2013. Um Estado policial, que tenta justificar os crimes do Estado com sofismas sobre policiais mortos em serviço. Enquanto o número de mortos pela polícia aumentou no ano passado 18%, o de policiais mortos caiu esses mesmos 18% em relação a 2017, de acordo com dados divulgados no jornal O Globo. Em 2017, o braço armado do Estado matou 5,2 mil cidadãos, enquanto que no ano passado esse número subiu para 6,1 mil.
O estímulo à violência encontra terreno fértil no Brasil atual, com a militarização da classe política e, o que é grave, o surgimento de lideranças que somente contribuem para a escalada da violência. Um dos mais autênticos é o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), defensor do Estado policialesco, ele próprio participante de “performances heróicas” ao empunhar um fuzil e de um helicóptero ameaçar metralhar habitantes de morros em seu Estado.
Ele estará em Vitória nos próximos dias 22 e 23 para participar do XVIII Fórum Nacional da Associação das Entidades Representativas de Policiais Militares e Bombeiros e Pensionistas do Brasil (Anermb). Vai falar sobre “A importância das Instituições Militares Estaduais para Preservação da Ordem Pública”.
Os policiais são cidadãos honrados e trabalhadores merecedores de melhores salários e condições de vida mais adequadas. Mas não são heróis. Atuam em área de risco, como milhões de outros, e por vezes ignoram as regras e cometem arbitrariedades, seguindo exatamente normas adotadas por lideranças que preferem a brutalidade ao invés do Estado de Direito.
É evidente que o crime tem de ser contido, mas o caminho, efetivamente, não se resume apenas em matar bandido: há mais questões a serem debatidas, a fim de que a guerra já estabelecida ao cidadão não se alastre ainda mais.