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Ferve o caldeirão do gorjetório

Havia outrora num programa humorístico de rádio uma dupla de personagens que representavam o corruptor e o corrupto. Eles dialogavam e não chegavam a um acordo até que o primeiro dizia ao outro, identificado como político ou funcionário público:
 
– Doutor, toque aqui neste objeto.
 
– Hã?
 
– Toque, Doutor, o senhor não vai se arrepender.
 
O outro tocava no “objeto misterioso” e logo ficava bonzinho. Estava implícito no quadro que o “objeto” era um pacote de dinheiro.
 
Passados tantos anos, ferve cada vez mais o caldeirão do gorjetório.
 
Enquanto o MPF e a PF juntam indícios e provas de “propinas” associadas a contratos superfaturados em encomendas da Petrobras – ficam para o segundo tempo, se houver, os contratos da Eletrobras e outros entes estatais –, resta esperar que no devido tempo o Judiciário esclareça o que é ético e permitido no mundo dos negócios em que o dinheiro público é usado para pagar serviços privados.  
 
Talvez tudo tenha começado quando a primeira igreja passou a cobrar o dízimo (ou, seja, 10% dos rendimentos dos seus fieis), mas o fato é que o mundo dos negócios consagrou inúmeras formas de “gratificação” por serviços prestados. Façamos um recorrido pelas mais visíveis. Observe-se quanto nomes tem “a coisa”.
 
Nos restaurantes e hotéis, institucionalizou-se a “gorjeta” de 10%, valor que pode ser maior, claro, dependendo da qualidade do serviço e da satisfação do cliente. Em muitos lugares, a gorjeta é legalizada como “taxa de serviço”.
 
No mercado imobiliário, vigia antigamente a “taxa de corretagem” de 5% ou 6%, mas houve uma diversificação que pode ser resumida assim: enquanto nos alugueis a taxa pode chegar a 10%, nas vendas de grandes apartamentos orçados em milhões, o corretor assalariado pela incorporadora se contenta com apenas 1%.
 
Nos remates de animais e leilões de mercadorias, o profissional responsável pelos negócios tem direito a uma “porcentagem” de apenas um dígito (5%, máximo) de cada negócio.  
 
Nas galerias de arte, a “comissão” vai de 25% a 50%.
 
Em bancas de jornais (que estão minguando) e livrarias (dominadas por grandes redes), a “margem” é de 30%.
 
No setor financeiro, entre as inúmeras taxas existentes, uma das mais peculiares é o “spread” bancário, taxa a que faz jus um banco ao agenciar ou intermediar um empréstimo de um grande banco. Por exemplo, o banco do estado faz o meio-campo entre uma empresa regional e o BNDES. Sai o financiamento e o intermediário recebe um spread de 0,5% sobre o valor total. Se rola algum por fora, nunca se sabe mas sempre se desconfia.
 
No mercado publicitário, a “comissão de agência” foi durante muito tempo de 20% sobre o valor dos anúncios e recentemente foi reduzida para 15%, mas essa queda foi compensada pela criação da “BV” (bonificação por volume), regra segundo a qual as agências recebem dos veículos um percentual das verbas programadas, o que redundou na concentração das veiculações e na cartelização da mídia.  
 
Na arquitetura, a convenção indica um percentual de 5% a 15% do valor da obra. No comércio de material de construção e em ramos afins (tintas, vidros, aço, móveis para auditórios etc), os compradores são aquinhoados com “descontos” ou com “agrados” depositados em conta-corrente ou em contas-laranjas…
 
Entramos agora no amplo universo das “consultorias” dos grandes negócios, cujas comissões variam tanto que adquiriram nomenclatura específica: “bola”, “graxa”, “propina”. Quem opera nesse mercado se identifica como “consultor”, nunca como “laranja” ou “lobista”.
 
Vasto é o vocabulário desse mundo em que o essencial é invisível aos olhos. A linguagem do mundo dos negócios PP (público-privados) lembra o palavrório dos serviços de telemarketing, que prometem benefícios e vantagens que não serão cumpridos.
 
A maioria das pessoas está acostumada a viver nesse mundo de falsificação e mentira, mas se sujeita a pagar o preço da convivência com a falcatrua, tal é a força do “objeto misterioso”. Em grande número de situações, não há saída senão submeter-se. É o que acontece quando vem o guardador de carros e diz: “Pode deixar, Doutor, eu tomo conta”.
 
A gente deixa, mesmo tendo consciência de que a desigualdade de renda entre um guardador e um proprietário de carro torna impossível um relacionamento confiável entre ambos. É assim que bacanas e pés-de-chinelo realimentam, em diversos níveis e em todos setores, a cordialidade fajuta que mascara desde as relações sociais até as transações no mundo dos negócios.     
 
Quem nos salvará de tanta hipocrisia? Ou será que precisamos dela para sobreviver?
 
A pergunta subjacente é: se em todo negócio há um percentual que se destina a remunerar ou gratificar o(s) agente(s) intermediário(s), quais os parâmetros para enquadrar uns e outros?  
 
Talvez seja ingenuidade esperar que o Judiciário ponha as coisas nos devidos lugares, mas nunca os brasileiros precisaram tanto de reflexões maduras e sentenças equilibradas sobre o ético e o lícito num meio cujo denominador comum é, de alto a baixo, o dinheiro.
 
LEMBRETE DE OCASIÃO
 
“Não se pode receber da verdade mais do que nela se investiu”
 
Milorad Pavitch, escritor sérvio (1929-2009)

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