As discussões acaloradas sobre o direito à vida reascenderam recentemente com a decisão dos deputados argentinos de aprovar a legalização do aborto até a 14ª semana de gestação, após intensos protestos de ativistas argentinas, que chegaram a fazer vigília de horas ao redor do parlamento. Inspiradas pela decisão, brasileiras também estão indo às ruas, fazendo renascer o debate país afora. Protestos simultâneos foram realizados em diversas cidades do País nessa segunda-feira (25), e também em Vitória, onde as capixabas reunidas no Fórum de Mulheres levantaram a bandeira, em ato realizado em frente à Assembleia Legislativa.
Quando isso acontece, as reações dos setores mais conservadores da sociedade, incluindo aí os religiosos, costumam ser impiedosas, alçando as mulheres que defendem a causa do aborto legal ao patamar de “assassinadas”. Mas, nessa história, quem é mesmo que está morrendo?
Segundo dados não oficiais, cerca de quatro brasileiras perdem a vida em abortos clandestinos diariamente. Nesse caso, estão mais sujeitas à morte mulheres pobres que não têm acesso às clínicas ou profissionais que, desde sempre, realizam o procedimento com segurança para quem tem dinheiro suficiente para pagar.
O fato é: quem deseja abortar vai fazê-lo, independentemente de a prática ser legalizada ou não. Independentemente de o Brasil ser um país de maioria cristã. Legalizar, no entanto, fará cessar ou reduzir as mortes de mulheres que decidem pela interrupção da gravidez, mas não têm como arcar pelo aborto seguro. Por esse motivo, a legalização do aborto ultrapassa o julgamento religioso, tornando-se, na verdade, um problema de saúde pública. Quando o que está em questão é evitar mortes, em primeiro lugar, deve ficar a racionalidade e não apenas a fé.
A sociedade brasileira já deveria ter alcançado um grau de maturidade pra fazer uma autocrítica, abandonando de vez a hipocrisia. O aborto, muitas vezes, não é só uma decisão da mulher, pois a concepção, como se sabe, depende da combinação de gametas masculinos e femininos. Mas, com certeza, quem carregará o fardo mais pesado será ela. Para uma mulher, o aborto nunca será uma primeira opção, nem a decisão mais fácil a ser tomada. Mas cabe a ela decidir e ter o direito de fazê-lo de forma segura e gratuita.
O debate de onde começa a vida sempre vai dividir opiniões, assim como a polêmica sobre o surgimento do mundo: criacionismo ou evolucionismo? Sempre haverá a visão religiosa e a científica. Até aqui, o limite imposto nos debates para o procedimento legal é a 14ª semana de gestação. Os médicos, da mesma forma, teriam autonomia para decidir, de acordo com suas próprias convicções, se realizam ou não o aborto. Não seriam obrigados.
As mulheres devem, sim, ter a liberdade para decidir sobre seu destino e sobre sua própria vida. Quem irá julgá-la? Suas próprias consciências. O fato é: quem é contra o aborto não precisa mudar de ideia, mas deve estar aberto ao debate e respeitar a decisão de quem opta por fazê-lo, por inúmeras questões às quais não se cabe julgar.
Num país em que o “aborto masculino” é uma dura realidade, vide o número de crianças sem registro do nome do pai em suas certidões, a legalização da interrupção da gravidez não deveria não ser motivo de tanta celeuma, mas uma medida para evitar sofrimento e a tragédia das crianças que crescem sem o mínimo necessário à sobrevivência, tornando-se “abortos vivos”.