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Merquior e a análisedo modernismo

José Guilherme Merquior, em seu livro de crítica literária e análise estética, Razão do Poema, reúne diversas reflexões sobre poesia e estética, concentrando alguns de seus textos em reflexões sobre alguns poetas brasileiros, no que eu dou destaque, aqui, ao segundo texto do livro: “A Poesia Modernista”. Tal texto é uma análise da geração de 22, em que Merquior tece uma elogiosa enumeração dos feitos dos poetas modernistas dessa geração, ficando, posteriormente, demolida a geração de 45, em um outro texto, que não cabe aqui agora citar em detalhes.
 
O fato que tem que ser colocado é que Merquior engrandece o nacionalismo e coloquialismo da geração de 22, dando bordoadas no resgate da lírica antiga da geração de 45. Para ele, o espírito de 22 se conserva vivo, pois após a fundação da grande obra dos modernistas, para Merquior, nada mais alterou profundamente a poesia brasileira.
 
À parte de alguns desastres programáticos de tal geração, a obra deixada foi superior aos eventuais desastres de tais programas literários. É na geração de 22, para Merquior, que a poesia brasileira se afirma como tal, deixando de lado formas alambicadas de parnasianismos que, dentro da forma, se afogavam, dando lugar à conquista do Brasil por essa nova poesia, e que colocava a importação de expressões estrangeiras como ponto secundário desta nova manifestação. A linguagem sai do eixo da forma colonizada e entra num novo modo de operação que busca a identidade nacional, dentro do regionalismo e do coloquialismo como portas de entrada para a poesia brasileira que se queria construir na ocasião, e como saída das velhas armadilhas líricas de que padecia a poesia antiga. Velha poesia, que tinha como sua expressão canônica Olavo Bilac.
 
Merquior elogia, por exemplo, um regionalismo que se universaliza em Cobra Norato, obra de Raul Bopp, que reúne a particularidade do solo com a excelência da arte, num apoderamento do realismo social e psicológico da nação, que culminou numa expressão lírica variada do homem nacional. Por sua vez, o poema-piada, tão criticado posteriormente (vide a geração de 45), entra como elemento de demolição do parnasianismo arraigado de gerações passadas, em que a piada era o terreno mais apto para uma maior liberdade lírica, revelando a típica emoção de Manuel Bandeira e o velado sentimento de Drummond. 
 
O dizer suave de Bandeira realizou uma transição na lírica da poesia brasileira, a qual passou de um viés puramente literário, para uma voz concreta do mundo e da língua falada, numa nudez da expressão sem atavios, que obedece mais à língua do que ao vernáculo puro, tendo na ironia a fundação principal de tal expressão, em que Bandeira se erguia no mais alto lirismo, numa marcha real do português-brasileiro. A lira de Bandeira, pois, embora ainda tocasse o som clássico, estava mergulhada de forma contingente no modernismo. 
 
Drummond, por sua vez, retirou o lirismo da subjetividade encastelada, e o colocou numa linguagem renovada e objetiva, numa direção social e agudeza reflexiva e irônica, que virou o lirismo até então praticado pelo avesso. O autor de A Rosa do Povo se emocionava nos sentimentos coletivos, e o terceiro Drummond, o de Claro Enigma, fundou, então, a grande meditação poética sobre as razões da existência, que era uma poesia pensativa da condição humana.
 
Por sua vez, Cassiano Ricardo tira da dor, não uma expressão sentimental, mas uma sensibilidade voltada à própria vida, com a aspereza social, numa disposição comunicativa de vivência. Jorge de Lima consegue realizar, na visão de Merquior, o que seria um dos mais ambiciosos poemas do modernismo, “A Invenção de Orfeu”. Tal poema, para se compreender, deve-se aceitar o fundo barroquismo da literatura novecentista, e ainda, lhe juntar a contribuição do surrealismo. Com a deslizante carreira de imagens e sons na qual o poeta livre, e sobretudo um poeta surrealista, cai, tal poeta pode se encontrar ébrio de tanta liberdade e descambar no excesso da expressão e no desfiguramento do dizer. Jorge de Lima, com seu barroquismo de molde surrealista, perde a unidade e se encontra fragmentado, numa visão de Ariosto, em que, embora possa reunir trechos magníficos, perde a obediência à língua, trocando-a pela profusão imagética e musical que é, antes de tudo, um bom elemento expressivo, mas pouco estabelecido como discurso. De outro lado, temos Mário de Andrade, numa lírica lúcida de realismo vibrante, e, ao seu lado, Oswald de Andrade, como uma concentração da imagem.
 
Na análise de Merquior, toda essa riqueza conquistada pelos poetas de 22 se viu, a partir da década de 30, ameaçada pelas reações neorromânticas de um retorno ao lirismo convencional, tendo como principal responsável pelo retorno ao “sublime”, o poeta Augusto Frederico Schmidt. Temos, neste poeta, uma angústia que se dilui numa linguagem aguada. Por sua vez, surgia, de outro lado, o misticismo inicial de Vinícius de Moraes que, mais tarde, abandonou este derrapante no “sublime”, transformando-se no maior poeta popular do modernismo.
 
Merquior, no entanto, no fim de sua análise do modernismo da geração de 22, conclama os novos poetas do Brasil a “resgatar” uma nacionalidade social, para uma expressão dita “brasileira”. Nacionalismo que, na minha visão, vejo com sobras de desconfiança, pois cai no mesmo pecado de resgate mais anterior, de que Merquior acusou a geração de 45. Ou seja, não se trata, exatamente, de resgatar ou progredir na poesia brasileira, mas de encontrar vozes e diálogos possíveis com toda a tradição, sem, contudo, se fiar na repetição de temas. Embora a expressão se auxilie na tradição, sempre deve buscar, na pluralidade de vozes, a sua própria voz. Voz que não se funda em mimética, mas em intuição de ritmo e exercício constante de ter no discurso e na expressão poéticos a nova poesia. 
   
Devemos entender tal nova poesia, nos dias de hoje, não mais como ruptura, mas como voz autêntica. Vejo com desconfiança o proselitismo de Merquior a favor da geração de 22 e contra a geração de 45, numa divisão maniqueísta do que se pode fazer em poesia nesta nossa nação. Merquior toma o regionalismo que se empenha em bandeira nacional como uma virtude, e, com isso, nega o experimentalismo de onde nascem novas ideias de expressão.
 
Nacionalismo que é vendido como fortuna verdadeira da literatura brasileira que, ébria de seu viés popular, se esquece, desavisadamente, da riqueza expressiva de uma linguagem que se queira como universal, em que a tese de que a aldeia reflete o mundo nem sempre deve ser levada ao pé da letra. 
  
Devemos, sim, como bem disse Merquior, ter atenção detida nos temas objetivos, sociais e filosóficos, como temos em João Cabral de Melo Neto, mas sem o cacoete de “brasilidade” de que padeceram muitas de nossas melhores cabeças. Identidade nacional que soa datada e que é superada pelo cosmopolitismo de nossa nova literatura brasileira do século XXI. (Lembrando que as reflexões de Merquior se referem a outro tempo, datando este texto sobre o modernismo, de 1962).
 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor
Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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