Mrs. Thatcher. Era como ela era mais chamada pelos britânicos na época , durante sua ascensão ao poder e depois durante o exercícios (pleno) do poder, entre 1979 e 1990. Esta forma de tratamento parecia expressar a sua imagem de profundas raízes familiares e, ao mesmo tempo, a sua condição feminina, numa época em que as mulheres eram absoluta minoria no mundo político britânico. Para mídia e as elites políticas ela era “Prime Minister”. Para o povo britânico era “Mrs. Thatcher”. Depois, quando deixou emocionada o número 10 da Downing Street (sede do governo) em 28 de novembro de 1990 ela passou a ser “Lady Thatcher” , integrante da câmara alta do Parlamento britânico, a Câmara dos Lordes.
Estive lá e vi de perto. Cheguei em 1980, quando ela estava no início do seu primeiro mandato, para o “PhD” na London School of Economics and Political Science. Fiquei até o final de 1983, quando concluí. Depois, voltei em 1990 , no final do terceiro mandato dela, para o pós-doutoramento na mesma Escola, que concluí em 1991. Foi um aprendizado de política, dentro e fora da escola. Em aproximadamente 11 anos, Londres mudou muito, a Inglaterra mudou muito, o Reino Unido também.
Naquela época, não era fácil para uma mulher ocupar a posição de primeira-ministra do (ainda então orgulhoso) ex-Império Britânico, num país de predominância do gênero masculino nas famílias e nos locais de trabalho, incluído aí o mundo político. Tendo sido “Império”, e sendo ainda uma monarquia parlamentarista de súditos orgulhosos e profundamente patriotas, não era fácil para os britânicos, principalmente para as elites sindicais e as classes altas, aceitarem de pronto serem comandados por uma mulher filha de pequeno comerciante, que cresceu em uma casa sem água aquecida e com banheiro externo, ao leste de Londres – uma área, digamos, naquela época, de classe média baixa.
Realmente não era fácil ascender sendo mulher. Ela desafiou Edward Heath em 1975 pela liderança dos “Tories”, o Partido Conservador. Narra-se que, então, quando ela foi comunicar ao ex-premier a sua decisão ele teria retrucado com desdém: “Você vai perder.Tenha um bom dia”. Ele estava errado. Ela ganhou. Ali começava a sua ascensão para chegar ao topo, como Primeira Ministra em 1979. Viria a ser a mulher mais influente do Século XX. Embora não tivesse a questão de gênero nas suas prioridades na época, ela mostrou que as mulheres podiam e podem. Abriu o caminho. É um legado.
No Brasil, 20 anos depois, foi e é difícil para Dilma Rousseff chegar ao poder e manter-se no poder, mesmo com todas as mudanças positivas na questão do gênero, que gradativamente tornou-se uma questão importante. Depois de Thatcher, chegaram muitas mulheres ao poder, na esfera pública e na esfera privada. Ela dizia: “eu não tive sorte. Eu mereci”. A noção de trabalho duro e de responsabilidade, que marcaram o seu estilo, a sua atitude pública e privada e a sua ideologia. Ela foi educada desde cedo sob a ética do trabalho duro e da autoconfiança. Vem daí a sua tenacidade. E o núcleo duro de suas ideias liberais: responsabilidade, trabalho duro, liberdades individuais .
Margaret Thatcher encarnava uma ideologia. Uma ideologia forjada e construída na sua trajetória familiar, na sua passagem pela Universidade de Oxford e no Centre for Policy Studies do Partido Conservador. Podia-se, e pode-se, não concordar com ela, como, aliás, mostram as reações de parte da sociedade britânica mesmo após a sua morte. Mas ela tinha um núcleo articulado e fundamentado de sólidas ideias e sólidos propostos. Uma ideologia e uma causa. “Mercadorias” (ideologia e causa ) que estão em falta no mundo presente. Com esta causa, ela transformou a política do Reino Unido e derrubou, lá e acolá, as suposições e ideias sobre a relação entre Estado e mercado. Isto não é pouca coisa.
Coisa de Estadista. Depois dela, e com ela, a sua ideologia e sua ação deixaram marcas profundas no seu Reino Unido e no mundo. No processo de globalização, na Queda do Muro de Berlim, nas modificações no Estado de bem-estar-social (e não na sua destruição) e no colapso da União Soviética. No seu próprio Reino Unido, Tony Blair veio depois, em 1997, e cunhou o “Novo Trabalhismo” , aperfeiçoando as mudanças iniciadas por Thatcher. Era, então, a chamada “Terceira Via”, construída pelo sociólogo Anthony Giddens da London School of Economics and Political Science.
A professora de História Contemporânea do King's College de Londres, Eliza Filby avalia que apesar do legado negativo deixado , como o excesso de liberdades no mercado financeiro, Thatcher “tirou o país do caos…um caos que vinha desde o Século XIX….” (O Globo, 9/4/13). Com efeito, ela assumiu com a economia em estado muito ruim em 1979, com falências e desemprego alto e virou o jogo ao longo do caminho, auxiliada pelo petróleo do Mar do Norte e por suas políticas que acabaram gerando um ciclo virtuoso de recuperação econômica e de recuperação do sentimento de confiança nacional. Eu vi.
Vi mesmo. No inicio dos anos 80, vi gente dormindo no frio, em caixas de papelão, nos arredores do campus da London School of Economics, no centro de Londres, perto da City de Londres. Coisas que a gente na época achava que só acontecia em países do então chamado Terceiro Mundo. Depois, já em 1990, vi outra cidade, outro país. Uma sociedade de consumo, com ampliação da classe média.
Thatcher demoliu dois pilares conservadores da sociedade britânica na época: os líderes conservadores da classe alta, que dominavam o seu Partido Conservador, e os líderes sindicais da indústria do carvão e outros segmentos industriais, herdeiros da Revolução Industrial e do Império Britânico, que tinham grande influência sobre o Partido Trabalhista. Ela enfrentou e venceu fortes resistências às mudanças e, com isso, abriu caminho para o crescimento da classe média e do empreendedorismo, promovendo uma espécie de revolução do consumo e uma vigorosa política habitacional, sem quebrar os alicerces do Sistema Nacional de Saúde, que é muito caro aos britânicos . Quanto à questão sindical, no dizer de Eliza Filby, tratou-se de “uma derrota simbólica para a força histórica dos sindicatos, que causa muita insatisfação até hoje” .
Thatcher era clara e assumidamente uma política de direita, mas ela derrubou velhas ideias à direita e à esquerda. Tanto que o seu ideário fincou raízes e resultou, ao fim e ao cabo, numa espécie de “capitalismo popular”, como cunhado já na época de Tony Blair para designar o crescimento da classe média e a melhoria da situação econômica na época. Na época de Thatcher, a economia cresceu a uma taxa anual média de 2,46%, acima da média de 2,1% dos anos 70.. Suas ideias fixas de disciplina e ajuste fiscal, de privatizações , do livre mercado e do declínio do papel do Estado tornaram-se bandeiras abraçados mundo afora. Até que, hoje, como pontua Martin Wolf, “não é o Ocidente, mas são os emergentes que ostentam as bandeiras de mercados relativamente livres” (VALOR, 9/4/13).
Quanto à recuperação da confiança nacional e do patriotismo, eu estava lá em 1982 quando eclodiu a chamada Guerra das Malvinas/Falklands e ela decidiu enviar uma frota naval para retomar as Ilhas então invadidas pela Argentina. O filme “A Dama de Ferro” retrata bem este episódio histórico emblemático. Ele mobilizou o Reino Unido. Jamais vou esquecer um dia em que fui à sala do meu Supervisor de estudos para discutir um capitulo da minha tese de doutorado. O professor-titular George Jones, inglês da gema. Naturalmente solícito e polido, Jones me perguntou a queima roupa, assim que eu sentei na sala na poltrona a frente da poltrona dele: “are we still friends?”….Para ele, a guerra das Malvinas era uma questão nacional de afirmação da Soberania do seu país. Para mim, um jovem de 31 anos , estudante de doutorado mergulhado nas nuvens da “viagem intelectual do doutoramento” e nos escritos de Max Weber, Karl Marx e muitos e muitos outros, aquilo era apenas uma guerra insana. Um “non sense”. Respondi: “0f course we are”…. (.Mantive regular correspondência ou contato com George Jones. Quando fui depois para o pós-doutorado, como “Academic Visitor”, fomos colegas. Estivemos juntos no ano passado, por ocasião da “Reunião de Confraternização” das turmas de 1980-1984 da London School of Economics ).
Ali, eu entendi como aquela guerra tinha unido os britânicos em torno da figura altiva e destemida de Margaret Thatcher. E como ela, com isto , resgatou o seu prestigio político e a sua popularidade. O ápice foi a decisão dela, bem retratada no filme, de ordenar o bombardeio de um navio argentino fora da zona de combate, o cruzador General Belgrano, que afundou com 1.093 tripulantes, a maioria recrutas. Ela ordenou, no dia 02 de maio de 1982 na mesa de almoço com ministros: “Afunde-o!” …..A Guerra durou 74 dias e reafirmou o domínio do Reino Unido sobre o arquipélago. Contribuiu para piorar a situação do ditador argentino , general Leopoldo Galtiere. E, acima de tudo, permitiu que Thatcher ficasse mais oito anos no poder.
Margaret Thatcher deixou o poder em 22 de novembro de 1990, principalmente por causa do descontentamento com a sua política fiscal e com o seu erro político de insistir em criar uma taxa chamada “Pool Tax” , que incidiria da mesma forma sobre todos os britânicos. Foi substituída por John Major, seu candidato, que se torna então Líder do Partido Conservador e Primeiro Ministro, encerrando os anos Thatcher. Figura politicamente limitada e “assombrada” pela presença virtual marcante de Margaret Thatcher, Major acaba deixando o poder para o retorno do Partido Trabalhista de Tony Blair. Com o “Novo Trabalhismo” , forjado nos laboratórios da chamada Terceira Via, as ideias de Thatcher continuaram muito em vigor…..Coisa de estadista. Um exemplo de “long durée” na política e na sociedade britânicas, diriam os sociólogos franceses.