Como outro qualquer, cinzento e triste. Tudo em volta tem aquele tom melancólico de dia de chuva; o mundo sem sol perde a graça. Da janela de seu exíguo escritório, no décimo andar de um prédio cinzento e feio, Luís vê passar um guarda-chuva, que melhor seria definido como chama-sol – azul de bolinhas amarelas, contrastando com o dia frio e triste.
Sobre a escrivaninha o aguardam pilhas de processos cheirando a mofo; pessoas anônimas esperando decisões que demoram séculos para serem decididas – que diferença faz se atrasa o monótono bater do carimbo na última folha – Recebido e Encaminhado, data; Recebido e Encaminhado, data – com a mesma constância com que bate a chuva lá fora? Num impulso, joga o celular no bolso e corre para o elevador.
Que, como sempre, demora a chegar. Está mais impaciente ou a geringonça hoje está fazendo pirraça? Por fim chega na rua, onde a chuva aumentou e ele esqueceu o guarda-chuva. Não dá tempo de voltar, mas pelo menos o casaco é de couro. Corre na direção da sombrinha azul de bolinhas amarelas, flutuando ao vento como uma pipa azul pintada de sóis amarelos.
Vai se desviando de gente indo e vindo, apressada também em fugir da chuva e chegar a algum lugar. Ninguém para para ver quem carrega um guarda-chuvas tão risonho num dia tão mau-humorado. Luís o perde de vista, mas logo desponta mais na frente, subindo e descendo no ritmo dos passos apressados. Só pode ser mulher, só pode ser jovem… quem mais ousaria um guarda-chuvas de bolinhas amarelas?
De repente está perto, outros guarda-chuvas encobrem a figura, mas dá para ver o sapato azul de saltos muito altos. Estileto, adaga, Everest… que nome dão a esses saltos de malabaristas? O coração bate mais rápido; calçando um sapato com esse salto, ainda por cima azul, só pode ser jovem, só pode ser bonita. Uma onda de inoportunos salta do ônibus que parou no sinal fechado, e outra vez perde de vista o guarda-chuva e a moça azul.
Logo desponta outra vez, lutando contra a chuva insistente como um bebê que ensaia os primeiros passos. Luís chega bem perto, dá para ouvir o batucar dos saltos na calçada, firmes e apressados,… só pode ser bonita, só pode ser ousada. Onde irá com tanta pressa num dia de chuva, arrastando um guarda-chuvas amarelo de não-bolinhas azuis, flanando ao vento como uma bandeira pedindo passagem?
Tão perto que sente o perfume… tão perto que ouve o riso no celular. Com quem fala entre a chuva e o guarda-chuva? A chuva para de repente, o sol se insinua numa fresta de nuvem, deve ter ficado curioso em ver também quem carrega um guarda-chuvas com bolinhas cor de sol. Um movimento brusco no guarda-chuva indica que ele vai ser fechado, provavelmente dobrado e jogado na bolsa, mesmo molhado.
Luís para. Deixa sumir de sua vista a moça que passou sob sua janela e o arrastou para a chuva, por certo bonita, por certo comprometida. Não aguentaria uma decepção; prefere guardar o breve momento na lembrança, sem continuação ou consequências. De hoje em diante, toda vez que chover, vai correr para a janela… Volta à sua sala e aos processos que nunca são processados, a seus sonhos que nunca são realizados.