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O desmanche do Museu Mello Leitão

A alternância de vínculo é um procedimento que visa melhorar o funcionamento institucional. Assim foi quando o Museu Mello Leitão, em Santa Teresa, região serrana do Espírito Santo, passou da Fundação Nacional Pró-Memória para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e, depois, para o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). Simples assim também deveria ter sido a transferência do Museu Mello Leitão ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Todavia, o caminho seguido foi outro, muito mais pedregoso, irresponsável e desrespeitoso ao patrimônio de utilidade pública capixaba deixado à sociedade pelo Patrono da Ecologia no Brasil, Augusto Ruschi.
 
O CAMINHO CORRETO – E NÃO SEGUIDO
 
Descrição: a verdadeira transferência do Museu Mello Leitão ao MCTIC teria sido muito simples e segura: a própria legislação brasileira de Museus (vide Instituto Brasileiro de Museus) aponta o dever de se proteger os bens de utilidade pública, como o Mello Leitão, que estava vinculado ao próprio Ibram. A mesma legislação prevê também a vocação dos museus em abrigar instituições com objetivos complementares, ou seja, cabe ao Museu Mello Leitão abrigar em sua estrutura o Instituto Nacional da Mata Atlântica (INMA), que foi criado em 2016 pelo MCTIC. O processo de transferência deveria ter contemplado o interesse da população teresense e capixaba, pela participação dos cidadãos e das promotorias de justiça do município e do Estado, já que o Museu Mello Leitão é um patrimônio público do Espírito Santo, decretado de utilidade pública municipal e estadual desde a década de 1950. 
 
Coerência lógica: dentre todas as instituições de pesquisa da região ocupada pelo bioma Mata Atlântica (regiões Sul, Sudeste e Nordeste do País), justamente o Museu Mello Leitão teria sido escolhido para abrigar o Instituto Nacional da Mata Atlântica. Todo esse mérito é creditado à sua íntima história com a conservação do bioma, fruto dos estudos científicos e esforços conservacionistas de seu fundador, o Patrono da Ecologia no Brasil.
 
Era de se esperar que a vinculação ao MCTIC contribuísse para que o Museu Mello Leitão ampliasse a eficiência em alcançar seus objetivos institucionais, o que, por sua vez, permitiria ao Museu Mello Leitão contribuir eficientemente com o MCTIC e seus institutos – neste caso específico, com o Instituto Nacional da Mata Atlântica. Um formato correto tanto pelo ponto de vista legal quanto moral, pois respeitaria a memória do cientista Augusto Ruschi, com a manutenção existencial da instituição por ele criada.
 
O CAMINHO ERRADO – EM CURSO
 
Descrição: a verdadeira transferência não se concretizou, tendo, ao invés disso, sido usada como camuflagem para a alienação do patrimônio do Museu Mello Leitão (Lei 8.877 de 2016). Sob o pretexto de que a instituição apenas “mudaria seu nome” para Instituto Nacional da Mata Atlântica, o referido museu teve seu CNPJ completamente esvaziado – patrimônio público capixaba -, sendo transferido para o recém-criado Instituto Nacional da Mata Atlântica, de propriedade do Ministério, que deveria apenas abrigá-lo. 
 
Incoerência lógica: a justificativa de que a íntima relação institucional do Museu Mello Leitão e seu fundador com a própria história da conservação e das pesquisas na Mata Atlântica teria sido suficiente para convencer o MCTIC de que, dentre tantas instituições de pesquisa na região da Mata Atlântica, esse museu, no interior do Estado, é o local adequado para “trazer” seu instituto. Mas, essas mesmas qualidades, de nada, absolutamente nada, serviram para impedir que o Museu fosse mantido em seus termos originais, tão pouco para a existência de um caminho constitucional limpo e respeitoso ao patrimônio público capixaba.
 
O DISFARCE DO CAMINHO ERRADO
 
A leitura da Lei 12.954/2014 traz confusão sobre a verdade dos fatos ocorridos, pois menciona sim a mudança de nome do Museu Mello Leitão, porém, logo em seguida, cria uma nova instituição com o nome recém-adotado. A confirmação da má intenção vem com a leitura da Lei 8.877/2016, em que fica clara a alienação do patrimônio físico, obrigações e direitos do museu para o novo instituto. Mas um disfarce, para ser bom, tem que convencer, correto? 
 
Eis então que quatro atores se uniram na missão de convencer a sociedade dessa mentira e, ainda por cima, obter apoio da mesma: a Associação de Amigos do Museu Mello Leitão (Sambio), a direção do Museu Mello Leitão, até mesmo o Boletim Científico do Museu Mello Leitão, e um pequeno grupo de acadêmicos da Universidade Federal do Espírito Santo. Dali vinha (e ainda vem) o apoio a maior e mais nefasta mentira que corroeu a estrutura institucional do Museu Mello Leitão, levando à alienação do patrimônio público capixaba. 
 
Para se ter uma ideia, muitos conhecidos meus, incluindo professores da própria Ufes, tem me procurado para obter esclarecimentos sobre essas informações e afirmam não concordar com o movimento MoveINMA, manifestando, inclusive, arrependimento em ter apoiado o abaixo-assinado do referido movimento. Ou seja, pessoas cujos valores ético e moral foram usurpados pela má fé de terceiros. Como essas pessoas mesmo me disseram: “pensava estar tudo bem com o museu, porque estou acompanhando no Facebook que o próprio ‘museu’ e sua associação de amigos (Sambio) apoiam o que está acontecendo”. 
 
TRABALHANDO O PROBLEMA
 
Na tentativa de entender o que me parecia “errado” com o rumo da transferência do Museu Mello Leitão, iniciei em 2014 meu diálogo com o diretor, Hélio de Queiroz Boudet Fernandes, quem se mostrou irredutível em sequer discutir a questão, defendendo que o museu estava apenas trocando de nome. 
 
No mesmo ano fui convidado para uma das reuniões de tomada de decisões sobre o caso junto a representantes do Museu Mello Leitão, proponentes da falsa transferência (representados por Sérgio Lucena Mendes – MoveINMA), e representantes do MCTIC. Na reunião fora discutida a suposta necessidade de se remover todas as coleções científicas do museu, o que felizmente foi evitado, graças ao bom senso demonstrado pelo representante do MCTIC. Depois disso, deixei de ser convidado para novas reuniões, e também fui “punido” com a recusa da renovação do meu vínculo de pesquisador colaborador do Museu Mello Leitão em 2015 – resposta que espero oficialmente até os dias de hoje. 
 
Foi então que pude acompanhar a propagação da mentira, que a essa altura alcançava a esfera política, onde representantes da bancada capixaba apoiavam/divulgavam a vinda do Instituto Nacional da Mata Atlântica sem ao menos conhecer as verdadeiras facetas desse trâmite que aliena o patrimônio de utilidade publica capixaba. Tratei de alertar os representantes políticos, tanto na Câmara de Santa Teresa como na tribuna da Assembleia Legislativa, em Vitória. Da revelação veio o apoio da bancada capixaba, sobretudo da deputada Luzia Toledo (PMDB), e em meados de 2016, o caso estava em Brasília, amparado pelos senadores Rose de Freitas (PMDB) e Ricardo Ferraço (PSDB), os quais levaram a discussão ao ministro Gilberto Kassab (MCTIC). 
 
Junto ao gabinete da senadora Rose, chegamos até mesmo a escrever uma emenda de lei que contornaria toda a situação, fazendo justiça ao Museu e ao Instituto, como moldado no item “caminho correto”. Lamentavelmente, tudo parou ali mesmo, e a emenda que devolveria ao povo capixaba seu único museu de história natural não seguiu adiante. Ao constatar que os caminhos de construção legal que ajustiçaram o Museu Mello Leitão não puderam ser também utilizados para resgatá-lo, comuniquei formalmente o  Judiciário. Então, no momento, o futuro do Museu Mello Leitão depende do respeito aos direitos da sociedade. 
 
LEMBRETE DE OCASIÃO
 
A todos que se sentiram usados pelo MoveINMA por terem sido solicitados a manifestar apoio sem saber se tratar do desmanche do Museu criado por Augusto Ruschi, peço que não percam a esperança. Não sigam o exemplo da direção do Museu e sua sociedade de amigos. Não percam a esperança no Museu Mello Leitão, nem no meio ambiente, pois o Espírito Santo e a Mata Atlântica merecem muito mais!


Piero Ruschi é Biólogo, doutor em zoologia pelo Museu Nacional/UFRJ, atuante nas áreas de Biodiversidade Genética, Evolução, Conservação da Natureza e Responsabilidade Socioambiental

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