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O enigma de Jango

O criador de gado João Goulart forjou sua liderança política a partir da amizade com o ex-presidente Getúlio Vargas, seu vizinho de fazenda em São Borja. Os dois se conheceram pessoalmente em 1938, quando o ditador do Estado Novo visitou a terra natal. O povo se ajuntou, Jango fez um discurso e o ditador o elogiou: “Falas muito bem, devias entrar na política”.
 
O “coronel” Vicente Goulart, pai de Jango, disse que não, que o rapaz precisava ficar no campo para cuidar dos negócios da família, já que ele estava ficando velho e cansado.
 
O rapaz tinha mesmo olho para a compra e venda de gado, tanto que aos 20 anos já era independente e rico. Até avião possuía. Um simples teco-teco sim, mas era nele que Jango voava para, bem antes dos outros invernistas, descobrir onde estavam as melhores oportunidades.
 
Antes de entrar na política, Jango encontrou tempo para se formar advogado em Porto Alegre, mas nunca exerceu o ofício. Em 1945, quando Vargas deposto voltou para São Borja, Jango foi dos primeiros a abraçá-lo. Ficaram amigos de verdade. Em 1947, inscrito no PTB, elegeu-se deputado estadual com pouco mais de 4 mil votos, mas ficou na oposição porque o governo estadual fora ganho pelo PSD de Walter Jobim.
 
Em 1951, com mais de 40 mil votos, Jango elegeu-se deputado federal e assumiu o cargo de secretário de Interior e Justiça no governo do trabalhista Ernesto Dornelles, primo de Getúlio Vargas, recém-eleito presidente. Em 1952, Jango foi para o Rio assumir sua cadeira na Câmara e fazer história nas rodas boêmias da capital da república.
 
Com o dinheiro ganho na pecuária e um mandato pelo PTB, não lhe faltava nada para ser um homem feliz. Poderia ter ficado na maciota como tantos outros políticos. Morava no Hotel Regente, no Flamengo, perto da Lapa notívaga e do Palácio do Catete, moradia e sede do governo do presidente Vargas, criador do PSD e do PTB.
 
Em meados de 1953, Jango foi nomeado ministro do Trabalho. Os sindicalistas agitavam o Rio e outras capitais. Embora proibidas pela Consolidação das Leis do Trabalho, as entidades intersindicais começavam a atuar nos bastidores políticos. Na oposição, o advogado gaúcho João Neves da Fontoura, ex-membro da Revolução de 1930, escreveu um artigo dizendo que estava em marcha um plano para implantar uma “república sindicalista” no Brasil. Segundo o historiador Jorge Ferreira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a expressão “república sindicalista” fora criada de boa fé em agosto de 1953 pelo pernambucano Wilson de Barros Leal, então presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Têxtil de Recife. O termo renderia pano para muita farda ao longo dos anos. 
 
No ministério Jango recebia todo mundo, sem preconceitos de cor ou bandeira política. Naturalmente, dava preferência aos petebistas. O historiador Jorge Ferreira, autor de “João Goulart – Uma Biografia”, reconheceu como histórica a sua atuação: “Pela primeira vez na história republicana, uma autoridade pública encarregada das relações entre Estado, empresários e classe trabalhadora negava-se a acionar a máquina repressiva estatal para conter a onda reivindicatória e, algo inédito, dialogava, negociava e defendia os direitos dos assalariados”.
 
No início de 1954, quando Jango declarou-se a favor da duplicação do salário mínimo para Cr$ 2 400, não houve nenhum clamor imediato, mas em poucos dias estava circulando em unidades militares e repartições públicas o chamado Manifesto dos Coronéis, assinado por dezenas de oficiais superiores das faixas de major a coronel. Se adotada, a duplicação salarial “resultará, por certo, em aberrante subversão de todos os valores profissionais”, dizia o documento, que começara reclamando dos equipamentos obsoletos e outras graves deficiências técnicas e materiais das Forças Armadas. Além de queixas profissionais, o manifesto criticava a corrupção administrativa, o clima de negociatas e outras mazelas atribuídas ao governo central. A duplicação do salário mínimo no âmbito civil desequilibraria as escalas salariais dos militares, que não aceitariam ser desvalorizados.
 
Era um documento de protesto articulado pelo coronel Golbery do Couto e Silva, futuro criador do Serviço Nacional de Informações (SNI), e apoiado por 81 outros nomes que dez anos depois estariam na proa da ditadura militar: Antonio Carlos Muricy, Adalberto Pereira dos Santos, Silvio Frota, Ednardo D’Avila Mello, Jurandir Bizarria Mamede, Syzeno Sarmento, Amaury Kruel, Euler Bentes Monteiro e Fritz de Azevedo Manso. Muitos deles eram estudiosos da doutrina militar, verdadeiros intelectuais armados.
 
A imprensa elogiou o documento, fartamente explorado na Câmara. Nessa época já estava em ação a Cruzada Brasileira Anticomunista, alimentada por empresários, militares, diplomatas e intelectuais alinhados com os EUA na chamada Guerra Fria contra a URSS, a China e outros países da Europa e da Asia. 
 
Getúlio Vargas não resistiu à pressão: Jango teve de deixar o ministério apenas oito meses depois da posse. Saiu de lá sendo chamado de demagogo pela imprensa de oposição. Os petebistas o homenageavam como um exemplo de nacionalismo reformador. Nada a ver com o trabalhismo inglês. O de Jango era genuinamente brasileiro. Orgânico, rasteiro, tinha foco na melhoria de vida dos trabalhadores e pregava o aprofundamento dos benefícios criados a partir de 1934, o ano da criação do Ministério do Trabalho pelo primeiro governo de Getúlio Vargas, o futuro Pai dos Pobres. 
 
Fora do ministério, Jango continuou no governo como deputado, presidente do PTB e íntimo do Catete. Ao sair, entregou ao presidente uma carta em que explicou porque defendia os “humildes”. Elogiou o capital honesto, “amigo do progresso”, de sentido sadiamente nacionalista, e repudiou “o capitalismo desumano, absorvente de forma e essência, caracteristicamente antibrasileiro, que gera trustes e cria privilégios, e que, não tendo pátria, não hesita em explorar e tripudiar sobre a miséria do povo”.
 
Era uma ideia em sintonia com o estado de bem-estar social implantado na Europa após a Segunda Guerra Mundial (1939-45). Sem rompantes, o nacionaltrabalhismo de Jango era simplesmente cristão e, ao contrário da pregação comunista em favor do confronto de classes, propunha pactos sociais sem ruptura institucional.
 
Conciliador nato, ele parecia não reconhecer diferenças ideológicas entre pessoas e países: o que lhe importava era o bem-estar da maioria. A seu ver, getulismo, trabalhismo, sindicalismo e peleguismo eram simples denominações em torno da mesma busca por melhores salários, expansão do mercado interno, ampliação da legislação trabalhista, defesa da empresa nacional contra o poder do capital estrangeiro e, também, reforma da estrutura agrária… 
 
O presidente Getúlio o admirava, tanto que lhe atribuem uma frase algo enigmática: “O Jango sou eu”, disse nos últimos meses de governo. Em 1 de maio de 1954, o presidente não deixou barato: duplicou o salário mínimo, com o que acirrou a campanha da imprensa de oposição, pautada pelo governador carioca Carlos Lacerda, rara inteligência a serviço de uma ambição fora do comum. Com o rosto dominado pelo nariz curvo, o agitador Lacerda, era chamado de “corvo” por seus adversários, angariou tanta raiva dos amigos do presidente que acabou sendo alvo de um atentado a bala numa noite do início de agosto. A morte do major da Aeronáutica que o acompanhava deu origem a uma escalada de investigações sobre o “mar de lama” do Catete. Com um suposto tiro no pé, O Corvo passou a circular com uma bota de gesso para dramatizar uma suposta situação de vítima do atentado. Pedia a cabeça de Vargas. Na manhã de 24/8/54, o presidente se matou, provocando uma reviravolta na trama golpista.
 
Com o desaparecimento de Getúlio Vargas, Jango apareceu naturalmente como um dos seus potenciais herdeiros políticos e, portanto, guardião de conquistas nacionalistas como a Cia Siderúrgica Nacional, a Cia Vale do Rio Doce, o BNDE e a Petrobras. Em outubro de 1955, foi eleito vice-presidente de Juscelino Kubitschek. Em 1960, repetiu a dose como vice de Jânio Quadros. Nos dois mandatos, nunca deixou passar oportunidades de “defender o povo” contra monopólios, cartéis e trustes. E após assumir a presidência, na qual ficaria de 7 de setembro de 1961 a 1 de abril de 1964, peitou as reformas até o fim, recusando arreglos à direita apesar de saber que a companhia de esquerdistas era um perigo para a estabilidade do seu governo.  
 
A amigos e à mulher Maria Teresa, com quem teve um casal de filhos, Jango admitiu que havia entrado num caminho sem volta. “Vou até o fim no cumprimento do meu dever” foi uma das frases que marcaram o fim do seu governo. Curta e definitiva, a declaração costuma ser lembrada porque Jango a repetia com frequência. No entanto, em vários documentos de sua responsabilidade há longos parágrafos pouco lembrados pelos historiadores. Dificilmente se encontrará um registro mais denso do pensamento e das intenções de Jango do que a mensagem enviada ao Congresso em 15 de março de 1964.
 
Redigida por Darcy Ribeiro e outras cabeças do último governo do PTB, a mensagem faz a defesa das reformas de base. Descontadas as cifras expressas em cruzeiros, o conteúdo é de uma atualidade gritante, meio século depois. Vários parágrafos se encaixariam perfeitamente na realidade brasileira de hoje. Eis um exemplo, logo na primeira página:
 
“Desejo, entretanto, que esta Mensagem ao Poder Legislativo seja, por igual, uma conclamação a todos os brasileiros lúcidos e progressistas, para que, cada vez mais unidos e determinados, nos coloquemos à altura do privilégio, que a história nos reservou, de realizar a nobre tarefa da transformação de uma sociedade arcaica em uma nação moderna, verdadeiramente democrática e livre.”
 
Outro parágrafo colhido logo adiante:
 
“O grande problema do nosso tempo não reside apenas na desigualdade entre países ricos e pobres, que tão flagrantemente caracteriza o cenário mundial, mas no fato de que o fosso entre uns e outros tende a aprofundar-se progressivamente, por força da maior velocidade de capitalização das nações industrializadas.”
 
E, para encerrar, os dois últimos parágrafos:
 
“Estou certo de que os nobres Parlamentares do Brasil, deste ano de 1964, guardam fidelidade às honrosas tradições dos nossos antepassados, que, em conjunturas semelhantes da vida nacional, como a Independência, Abolição da Escravatura, a Proclamação da República e a Promulgação da Legislação Trabalhista, tiveram a sabedoria e a grandeza de renovar instituições básicas da Nação, que se haviam tornado obsoletas, assim salvaguardando o desenvolvimento pacífico do povo brasileiro.”
 
“O desafio histórico repete-se outra vez. Agora, nossa geração é que está convocada para cumprir a alta missão de ampliar as estruturas sócio-econômicas e renovar as instituições jurídicas, a fim de preservar a paz da família brasileira e abrir à Nação novas perspectivas de progresso e de integração de milhões de patrícios nossos numa vida mais compatível com a dignidade humana”.
 
Na mensagem, Jango explicou em detalhes por que e como esperava fazer uma série de reformas, a começar pela mudança da estrutura agrária, excessivamente concentrada nas mãos de poucos em detrimento de uma grande maioria. O Congresso não quis nem saber.
O esforço foi em vão.
 
Depois de tanto tempo da deposição pelos militares do segundo presidente nascido em São Borja, ainda não se chegou a compreender como e por que um fazendeiro rico, de jeitão conservador, pode ter adotado um comportamento tão francamente reformista. Coisa de missioneiro turrão? Teimosia de fronteiriço?  
 
É um mistério não desvendado nem por amigos e auxiliares diretos. O economista mineiro João Pinheiro Neto (1928-2006), que foi ministro do Trabalho e presidente da SUPRA em seu governo, escreveu no livro “JANGO – Um Depoimento Pessoal” (Mauad X, Rio, 2008): “Jango sempre foi um enigma: ninguém jamais conseguiu penetrar em seu mundo interior, nem mesmo os seus amigos mais chegados”.      
 
 
LEMBRETE DE OCASIÃO
“No Congresso Nacional uma mão suja a outra”
(Millor Fernandes)

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