Sábado, 20 Abril 2024

O testamento

 

Os avanços da tecnologia vão alterando nossos hábitos e reformulando a cultura. Se as mudanças são para melhor ou pior, só as futuras gerações irão julgar, mesmo quando não somos os responsáveis, mas sujeitos passivos da modernidade.  Com  o prolongamento da expectativa de vida dos humanos, nem sempre acompanhado pelo prolongamento da qualidade de vida, a moda agora é o Testamento Vital, ou Declaração Antecipada de Vontade, esse ano aprovada no Brasil.
 
Não se trata de testamento dos bens materiais,  mas da escolha do modo de morrer. Dito assim pode parecer cruel, mas é um direito que toda pessoa deve ter de determinar se quer morrer em paz ou vegetar em um hospital,  acarretando gastos para a família ou para o governo. O Testamento Vital é um documento passado em cartório, mas não precisa de advogado.
 
Moderno e antenado, Torquato Nobreza se preocupa com a sogra, já na casa dos 80. Se ainda ativa lhe dá trabalho e despesas, imagina se cai doente. Sendo ele o rico da família, é claro que vai sobrar pra ele. Torquato reúne a família em torno de um bacalhau ao Zé do Pipo, e expõe a necessidade de Dona Ergulina fazer um testamento vital.
 
Sensíveis e religiosas, as cunhadas levam um choque. Eutanásia é pecado! gritam em uníssono. Torquato explica as diferenças, Ligar o paciente aos aparelhos é distanásia, a inútil prolongação da morte. Desligar os aparelhos pode ser considerado eutanásia, a abreviação da morte, mesmo se não há mais esperanças. Estou falando de ortotanásia, a morte natural, sem ajuda de artifícios tecnológicos que não ressuscitam ninguém.
 
O assunto acaba em briga – umas acham que o cunhado está certo, outras acham que ele pode estar mal intencionado. A sogra, lépida e lúcida apesar da idade,  nem quer ouvir falar no assunto, tem medo que usem seu livre arbítrio de hoje para lhe acabar com a vida amanhã, quando talvez ainda haja esperanças de cura para o mal que possa sofrer, Deus a guarde.
 
Acertando nas probabilidades, aos 90 anos a sogra cai doente e não tem médico ou remédio que dê jeito. Graças aos esforços de Torquato, porém, ela fez um testamento vital, manifestando o desejo de morrer com dignidade, sem máquinas que a mantenham respirando em morte. O documento foi trancado no cofre pessoal do genro, ao qual ninguém mais tem acesso. Uma questão de segurança, claro.
 
Errando, porém, nas probabilidades,  a sogra que nada tinha agora recebe uma gorda aposentadoria, quando ganha uma questão que se arrastava há tanto tempo na nossa rápida justiça que até já tinham esquecido que existia. Nem Deus sonhava ver o fim do tal processo! Enquanto isso a empresa de Torquato, que ia de vento em popa, requer falência, e a família perde tudo. Mas vão muito bem, graças aos proventos da Ergulina.
 
Ligando-se a pobre senhora aos aparelhos que lhe esticam o viver vegetativo, o dinheiro continua caindo na conta e pagando as despesas. A decisão é da família - distanásia, e os médicos a atam às máquinas;  ou ortotanásia, e a deixam morrer no tempo que Deus determinar. Mas é Torquato que, com o poder de um imperador romano no Coliseu, deve baixar ou levantar o polegar, tirando o testamento do cofre ou negando que tenha existido.

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