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O uivo de Ginsberg

Allen Ginsberg, poeta beat, começa seu livro de poemas Uivo de maneira brutal. O poema de abertura anuncia o carma da geração norte-americana. Temos então, neste poema, de nome Uivo, para Carl Solomon, o seguinte começo ou abertura: “Eu vi os expoentes de minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus …”. 
 
Neste poema já se tem a marca de que Ginsberg se faz como poeta e ente de vida poética. O desbunde era um tempo próprio da liberdade naquele contexto histórico da década de 1950, e o poeta e a vida do poeta se tornam uma unidade inseparável. Ginsberg viveu todos os seus poemas. Ginsberg viveu como poeta, para o bem ou para o mal.
 
Allen Ginsberg se destacou como um dos maiores poetas norte-americanos da segunda metade do século XX, sendo colocado, tanto no contexto da literatura como da vida, como um rebelde romântico. Ao lado de Jack Kerouac, William Burroughs, Gregory Corso, Lawrence Ferlinghetti, dentre outros, realizou uma revolução na linguagem. Os valores literários e de vida mudaram e se juntaram num mesmo amálgama de afirmação de liberdade.
 
A rebelião coletiva da geração beat, tendo em Ginsberg seu poeta maior, se consumou, no caso do escritor e poeta Allen Ginsberg, com o livro de poemas Uivo e outros poemas, lançado em 1956. E sua confirmação como poeta representante da vida nova preconizada por sua geração veio com o livro Kaddish e outros poemas. 
 
Na poesia beat, e com Ginsberg, houve uma ruptura com o beletrismo. Ou seja, a escrita mais anárquica, fundada em Ginsberg, passa longe da afetação estética de que muitos poetas desavisados padecem nas belas letras como um exercíco de estetas, e não de vida. Ou ainda: os poemas de Ginsberg entram na vida vivida e são esta vida, e não a erudição pura ou o beletrismo que, tentando ser lírico, não passa de poema esteta.
 
Então, Allen Ginsberg, com sua poesia, rompe com o beletrismo e o formalismo até então praticado, e já não se trata de uma poesia acadêmica, intelectualizada, não é poesia de “bom-moço”. Temos na poesia de Ginsberg outros defeitos, mas não os de criar um mundo dourado indiferente aos sintomas indesejáveis da vida real. Ginsberg trata muito mais da realidade do que de uma poesia ensimesmada. Ginsberg não é erudito, pois se seus poemas tem algo de erudição ou conhecimento letrado e livresco, isto passa no fluxo vivencial de que seus poemas são matéria.
 
Os poemas de Allen Ginsberg, portanto, são diretamente relacionados aos acontecimentos reais, escritos na primeira pessoa. Seu eu criador passa longe da abstração formal ou de formulações abstrusas. O caos de que é feita a escrita poética de Ginsberg não o torna necessariamente incompreensível, uma vez que sua leitura deve ser feita de acordo com o fluxo de consciência, mesmo método que aparecerá na chamada prosa espontânea de Jack Kerouac. 
 
Então, não há complexidade artificial nos poemas de Ginsberg. A dificuldade que se possa encontrar na leitura desses poemas será mais a do leitor que se deparar com estes poemas e envidar esforços racionais, só podendo entrar concretamente neste universo literário quando fizer da intuição vivencial e do fluxo mental livre sua bússola, tanto em Ginsberg, como na maioria dos poetas e da poesia produzida na História da civilização.
 
A nova relação entre poesia e vida que se estabelece em Allen Ginsberg, por sua vez, resgata valores de uma poesia mais vivencial que já existia em Walt Whitman, nos românticos e no fenômeno Arthur Rimbaud. O livro Uivo e outros poemas de Allen Ginsberg, no entanto, não passou imune a tentativas de censura, mas, ainda assim, conquistou milhões de leitores. Ginsberg se torna fenômeno editorial, vira símbolo de rebelião, e isto, tanto no plano da criação literária, como na vida. Esta literatura de vida inclui aí a liberdade individual e as relações sociais e, também, com justiça, uma afirmação política de um ideal poético.
 
As críticas de um intelectualismo acadêmico e, na maioria das vezes, blasê, com seu conservadorismo cristalizado, negam que haja uma dimensão erudita na geração beat, e isso também estaria ausente na poesia de Allen Ginsberg. A acusação mais comum é a de que tal literatura não passa de um espontaneísmo inculto, literatura de selvagens, nada intelectual, fonte de desbunde e deslumbramento. Seria uma literatura menor do que os cânones acadêmicos repetidos ad nauseam, com o apego clichê dos leitores médios aos “fragmentos consagrados” (sempre eles). Tal eleição de fragmentos é um padecimento do senso geral em todos os lugares, o que inclui aqui, tanto o contexto dos Estados Unidos, no caso de Ginsberg e de sua geração, como também o Brasil, na repetição quase maníaca de trechos standards que passam longe de um aprofundamento, até na obra destes mesmo cânones citados automaticamente.
 
A leitura equivocada dos críticos da geração beat se funda sobretudo no aspecto comportamental, ou seja, quando se trata do estudo desta literatura, tanto em Ginsberg, como nos outros expoentes de sua geração, tentam reduzir o escopo destes escritores com uma negativa blasê de que o comportamento visceral de uma literatura de vivência não tem fundamento verdadeiro para a literatura em geral. 
 
E, ainda mais, tal leitura negativa de uma escrita de vivência é parte de uma erudição afetada de que os acadêmicos, presos nos seus cabedais de comentários, são incapazes de ousar o novo ou a criação liberada, repetindo o vício estabelecido da citação de seus ídolos cristalizados, seja na literatura, como em todo o meio intelectual fundado em releituras, e não na criação de um caminho próprio e independente. A independência literária e intelectual, diga-se, provoca pruridos na estrutura burocrática dos articulistas escravizados do saber produtivo e não criativo do intelecto servil das academias.
 
A literatura vivida, portanto, não é culta, segundo os cânones cristalizados do intelecto blasé. Com isso, se perde muito do que a vida oferece, e a literatura tem que ser fiel à vida, e não aos meandros do intelecto purista ou do formalismo engessado e abstruso de sistemas herméticos sem sangue real, sem pulsação viva, e é aí que, embora possamos ver limites óbvios na poesia de Allen Ginsberg, tal como a incontinência exclamativa, temos que ter em conta que o sumo de toda a literatura é a vivência e não o intelecto acadêmico.
 
O primeiro poema de Uivo e outros poemas, citado aqui na abertura da coluna, uma homenagem de Allen Ginsberg ao seu amigo, e também escritor, Carl Solomon, foi lido e aclamado no famoso recital da Galeria Six, onde toda a geração beat norte-americana se reuniu, na data de 7 de outubro de 1955, juntando o núcleo beat de Nova York com os poetas da San Francisco Renaissance. O livro de Ginsberg também é objeto de um fato curioso: sua publicação em 1956 resultou num processo por pornografia contra seu editor, o também escritor Ferlinghetti, no ano seguinte.
 
A marca do poema Uivo, com o subtítulo ou dedicatória “para Carl Solomon”, foi importante, pois representou o depoimento e manifesto mais emblemático de uma geração, e trazia em si todas as inovações literárias que esta geração beat criou. Tais inovações são, por exemplo, as longas frases, o fluxo de consciência ou prosa espontânea que já era uma influência da prosódia bop espontânea de Kerouac, inspirada no Jazz americano do bebop em sua versão literária. Outra inovação: o ritmo veloz, uma escrita rápida e de fôlego, como toda literatura deveria ser, e que configurou algumas pérolas de Jack Kerouac, como os livros On The Road, The Subterraneans e Visions of Cody. Em Allen Ginsberg, junto com a prosa espontânea, temos ainda a influência da leitura de hai-kais e de textos orientais. 
 
Uivo de Allen Ginsberg pode ser criticado até por suas virtudes. Isto é, na literatura, vícios e virtudes são a mesma coisa. É bom saber, pois podemos fazer uma leitura crítica de um escritor e facilmente, num mesmo trecho, apontar a virtude e o defeito da escrita. A relatividade da crítica literária, portanto, possui uma dupla face, e ambas têm a mesma importância e fundamento. Ou seja, não se trata nem de vilania ou heroicização, nem de deslumbramento ou crítica acerba, a leitura crítica é um pêndulo e depende de uma escolha de quem vai fazer a crítica. 
 
No caso dos poemas de Allen Ginsberg, apontando seus defeitos e limitações, para não só fazer uma leitura rósea e aclamativa, tem, talvez, o problema da prolixidade e de uma afetação torrencial, a tal incontinência exclamativa que apontei um pouco antes é um deles. 
 
Outros diriam que a síntese nos poemas de Ginsberg estão na sua leitura correta, tudo bem, e que sua prolixidade é resultado da junção de fragmentos de poemas menores, pode ser. De outro lado, Ginsberg tem uma certa inocência poética, é uma literatura juvenil. Talvez agora fazendo coro aos acadêmicos, a limitação da poesia de Ginsberg é sua ênfase no grotesco como virtude. Algumas repetições enfadonhas da escrita automática na sua leitura às vezes também irritam. O limite do espontaneísmo é este: o verbo se força a dizer o tempo todo, e muitas vezes esbarra numa gagueira entre os versos que explodem. A escrita de explosão de Ginsberg por vezes engasga, a batida de sua máquina de escrever então se obriga a continuar. O resultado é bom, importante, mas em alguns trechos este tipo de limitação do que se quer dizer de maneira mais eficiente é quase óbvia ao lermos os poemas de Allen Ginsberg.
 
A virtude dos poemas de Allen Ginsberg, por sua vez, é a mistura de referências que aparece em sua escrita. Uma maneira de fazer poesia que é bem interessante: os poemas de Allen Ginsberg são um amálgama em que tudo se torna uma mandala, isto é, a matéria que se forma nos poemas de Ginsberg são sempre resultado e busca de uma escrita que se faz à maneira de uma mandala, referência direta aqui às suas influências orientais, que tem a sua substância mais forte com o Budismo. É a mandala da escrita livre e espontânea que é, sempre, o fluxo de consciência, a intuição literária que é formação mental em poemas que se fundam como verdadeiras mandalas num amálgama de referências.
 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

 
Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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