Pau de arara
Em entrevista a Bia Barbosa, da revista Desafios do Desenvolvimento
(do IPEA), o sociólogo Paulo Sergio Pinheiro deu detalhes do
funcionamento da Comissão da Verdade, encarregada de levantar crimes
contra os direitos humanos cometidos pela ditadura militar de 1964 a
1985. Instalada oficialmente em maio de 2012, a comissão tem dois anos
para apresentar seu relatório. Além de Pinheiro e outros seis membros,
a Comissão tem 15 assessores cuja missão é identificar e tornar
públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias
em que foi praticada a repressão de Estado durante a ditadura militar.
Como está sendo feito o trabalho?
PINHEIRO - Há várias equipes trabalhando, fundamentalmente com
arquivos. Os do Itamaraty, por exemplo, têm quatro toneladas de
documentos. Nada foi queimado. Também há a tentativa de se ter acesso
a documentos das Forças Armadas. O ministro Celso Amorim [da Defesa]
tem dialogado e dado apoio, da mesma maneira que o ministro [Antonio]
Patriota [Relações Exteriores). Teremos ainda acesso aos documentos da
Funai [Fundação Nacional do Índio],pois muitas violações foram
cometidas em ações contra indígenas, ou que tiveram relação com
conflitos agrários. Uma subcomissão importante é a que
analisará o papel do Judiciário na ditadura. Aquele poder sofreu e
também colaborou intensamente com a aplicação da legislação
autoritária. Além disso, estamos preocupados com os milhares de
membros das Forças Armadas reprimidos e punidos internamente durante o
período, algo que pouco se tem falado. Por fim, uma das preocupações
fundamentais é completar as informações sobre os desaparecidos - 475
foram analisados pela Comissão de Mortos e Desaparecidos - e os
exterminados, como os 42 sobreviventes da guerrilha do Araguaia que
foram assassinados na última “Operação Limpeza”, em 1974.
O senhor está trabalhando em qual das subcomissões?
Pinheiro - Eu trabalho com a questão dos sistemas de informações
externas, numa rede que existiu dentro do Ministério das Relações
Exteriores e que teve colaboração bastante estreita com os órgãos de
repressão. Também tenho um interesse especial pela reconstituição dos
vários crimes que estão na lei, como os assassinatos, desaparecimentos
forçados e prisões arbitrárias, como configurando uma política de
Estado dos governos da ditadura. Quer dizer, é preciso superar aquela
noção de que tivemos práticas e excessos cometidos por alguns poucos.
Na verdade, desde o Presidente da República, os generais e até os que
executaram cometeram esses crimes, todos estavam absolutamente
inteirados. Mas isso resta ser documentado.
No caso dos desaparecimentos forçados e assassinatos já
comprovados, há uma perspectiva de a Comissão fazer um estudo caso a caso?
Pinheiro - Refazer os 400 casos e mais as centenas de outras
ocorrênciasindividuais é uma tarefa impossível. Mas estamos começando
a reexaminar laudos de necrópsia utilizados nas informações sobre
esses desaparecimentos.
Uma das polêmicas sobre o funcionamento da Comissão
Nacional da Verdade tem sido o sigilo de seu trabalho. Qual a sua
opinião sobre isso? A ideia é que, ao final, tudo se torne público?
Pinheiro - Por trás dessa polêmica há uma enorme desinformação.
Recentemente tivemos um seminário sobre comissões da verdade na
América Latina e todas, também a da África do Sul, trabalharam com
confidencialidade. Trata-se de uma investigação sobre crimes
cometidos. Então não dá para fazer audiências com torturadores ou
suspeitos envolvidos nos desaparecimentos na frente da
televisão! Se considerarmos que há possibilidade de obter informações
que não teríamos, podemos conceder o anonimato. Do mesmo modo que a
imprensa trabalha com sigilo de fontes, nós também trabalhamos com
sigilo dos depoimentos. Isso é assim, foi assim e vai continuar sendo
assim. Mas também há uma dimensão pública do trabalho, que são as
audiências coletivas, em que se ouvem depoimentos específicos. É
evidente que a informação sobre o que se faz tem que ser pública. O
nosso site ainda é muito insatisfatório, vai ser
aperfeiçoado, mas vamos informar minuciosamente tudo o que se faz: as
correspondências trocadas com as autoridades, que tipo de arquivo
consultamos etc. Agora, depoimentos no curso de uma investigação, não
vamos publicar. Se vamos publicar depois, é outro problema.
Há também um objetivo de estabelecer um diálogo com a
sociedade através dessas audiências?
Pinheiro - Para mim, a audiência pública ideal é a que trata de um
caso concreto: o depoente, acompanhado de um advogado, com o relato
sendo televisionado de modo que os que sofreram os crimes possam
testemunhar. Isso nos dá informações, mas também tem um papel em
relação às vítimas, que podem participar publicamente do processo.
Vamos visitar todos os Estados. No Pará, o governador Simão Jatene
disse que vai propor a todas as correntes políticas a criação de uma
Comissão estadual. Em Alagoas, ela já foi formada. Na OAB de São
Paulo, do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul também.
Estão surgindo também comissões nas Assembléias Legislativas e em
universidades. Qual o papel desses espaços?
Pinheiro - A Comissão Nacional da Verdade não é coordenadora desses
movimentos. Ela tem um estatuto especial, é uma comissão do Estado,
produto de uma lei, nomeada pela Presidenta da República para
apresentar um relatório final do seu trabalho. Mas é evidente que
vamos colaborar com essas comissões. Acho da maior validade, por
exemplo, o movimento do Levante Popular, feito pelos estudantes. Isso
politiza o tema. O escracho e os comitês de memória dentro das
universidades estão dando uma contribuição extraordinária.
Essas ações dialogam com um dos objetivos da Comissão, que
é sensibilizar a sociedade para o que aconteceu neste período?
Pinheiro - Não precisamos ter grandes ilusões de que uma sociedade
profundamente autoritária e fundada no racismo estrutural vá se
mobilizar de um dia pra outro e sustentar a Comissão da Verdade. Mas é
evidente que a diferença entre silêncio e mobilização pode melhorar,
inclusive com a ajuda da mídia. Nossa comissão é a única da América
Latina que está acontecendo no século XXI. No funcionamento das
Comissões da Verdade na Guatemala e de El Salvador não havia internet,
twitter, facebook, nem toda a digitalização de arquivos. O atraso da
criação da Comissão assim é altamente compensado pelo que foi
realizado e pelos novos meios de comunicação.
O senhor falou da colaboração entre Comissão e Ministério
da Defesa. Mas o ministro anterior, Nelson Jobim, chegou a afirmar que
todos os documentos haviam sido destruídos. Como está esse processo
agora?
Pinheiro - O ministro Jobim é meu amigo, fez o primeiro Programa
Nacional de Direitos Humanos, mas a posição oficial da Comissão, que
já foi publicada, é que julgamos ilegais esses atos de destruição de
documentos. Minha opinião é que só quem acredita em fadas acha que não
existe nenhum arquivo. A própria Aeronáutica cedeu vários deles para o
Arquivo Nacional.
Pessoalmente, como o senhor se vê neste processo?
Pinheiro - Somos um grupo muito integrado, de grande coesão. Todos já
trabalhamos, em algum momento, um com o outro. E temos uma equipe
extraordinária de assessores e consultores, além do apoio da
Presidenta Dilma, sem interferência de nenhum ministro. O apoio
material do governo também é muito maior do que eu podia supor.
Como o senhor analisa as críticas feitas às funções e
formato da Comissão antes da aprovação da lei?
Pinheiro - Essas críticas vieram de setores que desejavam uma Comissão
da Verdade com funcionamento de tribunal. Ora, nenhuma das quarenta
Comissões da Verdade, inclusive a da África do Sul, teve poder
judicial. O importante é que nossa comissão tem mais poderes do que
qualquer outra da América do Sul e Central no século XXI, porque temos
o poder de convocar qualquer cidadão ou cidadã. Funcionários civis e
militares então, nem se fala! E os que não vierem, denunciaremos ao
Ministério Público Federal. Em segundo lugar, temos acesso
a qualquer arquivo, não importa seu grau de sigilo. Nos ministérios,
já temos acesso a documentos secretos e ultrassecretos. Em terceiro,
ao contrário do Poder Judicial, por causa da Lei da Anistia e do
acórdão do Supremo Tribunal Federal, temos o mandato de indicar a
autoria e as circunstâncias em que foram cometidos os assassinatos, as
torturas, os desaparecimentos forçados e a detenção arbitrária.
Houve afirmações também de que a Comissão não conseguiria
trabalhar por conta da decisão do STF sobre a Lei de Anistia.
Pinheiro - Foi outra choradeira. Não tem nada a ver uma coisa com a
outra. A Lei da Anistia não nos atrapalha nem ajuda, é algo que não
nos impede de fazer o que a Comissão nasceu para fazer. O relatório
final vai indicar a autoria e as circunstâncias em que esses crimes
foram cometidos pela ditadura.
Considerando sua experiência em direito internacional e o
conflito entre a decisão do STF sobre a Lei de Anistia e a decisão da
Corte Interamericana no caso Araguaia, existe a possibilidade de, no
relatório final da Comissão, haver uma recomendação para que a Justiça
responsabilize os responsáveis pelas violações de direitos humanos
durante a ditadura?
Pinheiro - Não sei. Felizmente ainda temos vinte meses para resolver
essa questão das recomendações. A posição de todos os membros da
Comissão da Verdade, inclusive a minha, que fui membro por oito anos
da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e apoiei a decisão do
presidente Fernando Henrique, em 1998, de reconhecer a competência da
Corte Interamericana, é que uma decisão da Corte deve ser cumprida
pelo Estado brasileiro. A doutrina do direito internacional
interamericano diz que as autoanistias não são válidas, e a anistia no
Brasil, como já falei muitas vezes, foi uma autoanistia. O Supremo não
entendeu assim, mas não cabe a mim nem à Comissão da Verdade ficar
contestando essa decisão. É algo que cabe ao Estado
brasileiro, e isso não nos atrapalha.
O senhor concorda com a estratégia do Ministério Público
de abordar judicialmente crimes como o desaparecimento e a ocultação
de cadáveres como crimes não prescritos, para poder responsabilizar os
perpetradores?
Pinheiro - Não tenho competência para avaliar se é uma boa ou uma má
estratégia. Só posso dizer da minha satisfação em ver o Ministério
Público Federal e o Sistema Judiciário brasileiro assumindo seu papel
dentro dos ditames da lei, que dão a eles alguma possibilidade de
ação. Digo a mesma coisa sobre outras condenações que estão surgindo.
Tenho a maior alegria em ver o resultado de casos como o [do coronel
Carlos Alberto Brilhante] Ustra [declarado torturador pelo Tribunal de
Justiça de São Paulo, em agosto último], especialmente pelo que isso
significa para as famílias dos que foram torturados e assassinados.
Essa manifestação dos tribunais brasileiros é algo que dá grande
conforto e esperança às famílias.
Por outro lado, há setores que ainda reagem aos avanços. O
Grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, teve sua sede invadida. É
de se esperar que, com o funcionamento da Comissão da Verdade,
conflitos sociais venham à tona para disputar diferentes visões sobre
este período na sociedade?
Pinheiro - Nós estamos numa democracia. No Brasil vigora a liberdade
de opinião, as pessoas e a imprensa são livres para se expressar. Mas
evidentemente não se pode cometer crimes, como essa invasão da sede do
Tortura Nunca Mais, que deve ser investigada. Desde que a expressão
dessas opiniões não seja traduzida em crimes, as pessoas são livres
para pensar o que quiserem sobre a Comissão da Verdade. Não espero
unanimidade.
Um dos objetivos da Comissão da Verdade é a promoção da
reconciliação nacional. Qual a sua leitura sobre esse conceito?
Pinheiro - Este termo está presente na lei que criou a Comissão e na
denominação de várias outras comissões da verdade pelo mundo. Mas
enquanto não tivermos bem encaminhados na reconstrução da verdade, é
muito cedo para se discutir reconciliação. Também depende do que vamos
encontrar; a reconciliação pode ocorrer na dinâmica do processo. As
vítimas querem antes saber sobre a autoria, as circunstâncias e a
responsabilidade do Estado, para então fazer esse trajeto da
reconciliação. Mas não somos nós que vamos guiá-las. Este é um tema
para o Estado brasileiro.
Quando a lei que cria a Comissão aponta no sentido da
reconciliação, ela sinaliza uma preocupação com o legado da ditadura
nos dias de hoje. Na sua avaliação, esse legado persiste?
Pinheiro - O entulho autoritário continua, por exemplo, na parte da
tortura. Não tem jornalista ou preso político torturado, mas é um
vexame que isso ainda continue. Execuções sumárias pelas polícias
militares do Rio de Janeiro e de São Paulo também são intoleráveis. A
democracia não pode continuar a conviver com isso. Também não pode
conviver com o ensino nas Forças Armadas ainda passar uma visão da
ditadura militar totalmente positiva, como se não existissem os crimes
que estamos discutindo. O processo, dinâmica e as recomendações da
Comissão podem contribuir para superar esse legado autoritário. Por
outro lado, uma das minhas tarefas na Comissão é reconhecer onde que
progredimos. Senão, nos daríamos um atestado de incompetência total.
Quais os grandes gargalos que o país ainda enfrenta na
garantia dos direitos humanos?
Pinheiro - Ainda que tenhamos caminhado na luta contra a pobreza
extrema, além dos direitos econômicos e sociais, o gargalo são os
direitos civis e a defesa dos direitos das minorias. A situação
subalterna ainda prevalece nos direitos econômicos e sociais, por
exemplo, para a maioria afro-descendente. É importante reconhecer que
o Brasil teve uma continuidade na política de direitos humanos. As
violações continuam, mas não são mais uma política de Estado.
Apesar de a violação de direitos humanos não ser mais
política de Estado, ainda há políticas de Estado que possibilitam a
violação?
Pinheiro - Mas não é o Estado que organiza os crimes cometidos por
seus agentes. As violações hoje cometidas por agentes do Estado nos
estados da Federação não são coordenadas como foram durante o regime
militar, o que já é uma diferença extraordinária. Continuará a haver
problemas, porque a caminhada dos direitos humanos nunca termina.
Temos uma porção de problemas, mas é preciso olhar para o que avançou
para reexaminar em que falhamos e o que deu certo.
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