Sexta, 03 Mai 2024

Pau de arara

 

Em entrevista a Bia Barbosa, da revista Desafios do Desenvolvimento 
(do IPEA), o sociólogo Paulo Sergio Pinheiro deu detalhes do 
funcionamento da Comissão da Verdade, encarregada de levantar crimes 
contra os direitos humanos cometidos pela ditadura militar de 1964 a 
1985. Instalada oficialmente em maio de 2012, a comissão tem dois anos 
para apresentar seu relatório. Além de Pinheiro e outros seis membros, 
a Comissão tem 15 assessores cuja missão é identificar e tornar 
públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias 
em que foi praticada a repressão de Estado durante a ditadura militar.
 
Como está sendo feito o trabalho?

 
PINHEIRO - Há várias equipes trabalhando, fundamentalmente com 
arquivos. Os do Itamaraty, por exemplo, têm quatro toneladas de 
documentos. Nada foi queimado. Também há a tentativa de se ter acesso 
a documentos das Forças Armadas. O ministro Celso Amorim [da Defesa] 
tem dialogado e dado apoio, da mesma maneira que o ministro [Antonio] 
Patriota [Relações Exteriores). Teremos ainda acesso aos documentos da 
Funai [Fundação Nacional do Índio],pois muitas violações foram 
cometidas em ações contra indígenas, ou que tiveram relação com 
conflitos agrários. Uma subcomissão importante é a que
analisará o papel do Judiciário na ditadura. Aquele poder sofreu e 
também colaborou intensamente com a aplicação da legislação 
autoritária. Além disso, estamos preocupados com os milhares de 
membros das Forças Armadas reprimidos e punidos internamente durante o 
período, algo que pouco se tem falado. Por fim, uma das preocupações 
fundamentais é completar as informações sobre os desaparecidos - 475 
foram analisados pela Comissão de Mortos e Desaparecidos - e os 
exterminados, como os 42 sobreviventes da guerrilha do Araguaia que 
foram assassinados na última “Operação Limpeza”, em 1974.
 
 
O senhor está trabalhando em qual das subcomissões?
 
Pinheiro - Eu trabalho com a questão dos sistemas de informações 
externas, numa rede que existiu dentro do Ministério das Relações 
Exteriores e que teve colaboração bastante estreita com os órgãos de 
repressão. Também tenho um interesse especial pela reconstituição dos 
vários crimes que estão na lei, como os assassinatos, desaparecimentos 
forçados e prisões arbitrárias, como configurando uma política de 
Estado dos governos da ditadura. Quer dizer, é preciso superar aquela 
noção de que tivemos práticas e excessos cometidos por alguns poucos. 
Na verdade, desde o Presidente da República, os generais e até os que 
executaram cometeram esses crimes, todos estavam absolutamente 
inteirados. Mas isso resta ser documentado.
 
No caso dos desaparecimentos forçados e assassinatos já
comprovados, há uma perspectiva de a Comissão fazer um estudo caso a caso?
 
Pinheiro - Refazer os 400 casos e mais as centenas de outras 
ocorrênciasindividuais é uma tarefa impossível. Mas estamos começando 
a reexaminar laudos de necrópsia utilizados nas informações sobre 
esses desaparecimentos.
 
Uma das polêmicas sobre o funcionamento da Comissão
Nacional da Verdade tem sido o sigilo de seu trabalho. Qual a sua 
opinião sobre isso? A ideia é que, ao final, tudo se torne público?
 
Pinheiro - Por trás dessa polêmica há uma enorme desinformação. 
Recentemente tivemos um seminário sobre comissões da verdade na 
América Latina e todas, também a da África do Sul, trabalharam com 
confidencialidade. Trata-se de uma investigação sobre crimes 
cometidos. Então não dá para fazer audiências com torturadores ou 
suspeitos envolvidos nos desaparecimentos na frente da
televisão! Se considerarmos que há possibilidade de obter informações 
que não teríamos, podemos conceder o anonimato. Do mesmo modo que a 
imprensa trabalha com sigilo de fontes, nós também trabalhamos com 
sigilo dos depoimentos. Isso é assim, foi assim e vai continuar sendo 
assim. Mas também há uma dimensão pública do trabalho, que são as 
audiências coletivas, em que se ouvem depoimentos específicos. É 
evidente que a informação sobre o que se faz tem que ser pública. O 
nosso site ainda é muito insatisfatório, vai ser
aperfeiçoado, mas vamos informar minuciosamente tudo o que se faz: as
correspondências trocadas com as autoridades, que tipo de arquivo
consultamos etc. Agora, depoimentos no curso de uma investigação, não 
vamos publicar. Se vamos publicar depois, é outro problema.
 
 
Há também um objetivo de estabelecer um diálogo com a
sociedade através dessas audiências?
 
Pinheiro - Para mim, a audiência pública ideal é a que trata de um 
caso concreto: o depoente, acompanhado de um advogado, com o relato 
sendo televisionado de modo que os que sofreram os crimes possam 
testemunhar. Isso nos dá informações, mas também tem um papel em 
relação às vítimas, que podem participar publicamente do processo. 
Vamos visitar todos os Estados. No Pará, o governador Simão Jatene 
disse que vai propor a todas as correntes políticas a criação de uma 
Comissão estadual. Em Alagoas, ela já foi formada. Na OAB de São 
Paulo, do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul também.
 
 
Estão surgindo também comissões nas Assembléias Legislativas e em 
universidades. Qual o papel desses espaços?
 
Pinheiro - A Comissão Nacional da Verdade não é coordenadora desses
movimentos. Ela tem um estatuto especial, é uma comissão do Estado, 
produto de uma lei, nomeada pela Presidenta da República para 
apresentar um relatório final do seu trabalho. Mas é evidente que 
vamos colaborar com essas comissões. Acho da maior validade, por 
exemplo, o movimento do Levante Popular, feito pelos estudantes. Isso 
politiza o tema. O escracho e os comitês de memória dentro das 
universidades estão dando uma contribuição extraordinária.
 
Essas ações dialogam com um dos objetivos da Comissão, que
é sensibilizar a sociedade para o que aconteceu neste período?
 
Pinheiro - Não precisamos ter grandes ilusões de que uma sociedade
profundamente autoritária e fundada no racismo estrutural vá se 
mobilizar de um dia pra outro e sustentar a Comissão da Verdade. Mas é 
evidente que a diferença entre silêncio e mobilização pode melhorar, 
inclusive com a ajuda da mídia. Nossa comissão é a única da América 
Latina que está acontecendo no século XXI. No funcionamento das 
Comissões da Verdade na Guatemala e de El Salvador não havia internet, 
twitter, facebook, nem toda a digitalização de arquivos. O atraso da 
criação da Comissão assim é altamente compensado pelo que foi 
realizado e pelos novos meios de comunicação.
 
O senhor falou da colaboração entre Comissão e Ministério
da Defesa. Mas o ministro anterior, Nelson Jobim, chegou a afirmar que 
todos os documentos haviam sido destruídos. Como está esse processo 
agora?
 
Pinheiro - O ministro Jobim é meu amigo, fez o primeiro Programa 
Nacional de Direitos Humanos, mas a posição oficial da Comissão, que 
já foi publicada, é que julgamos ilegais esses atos de destruição de 
documentos. Minha opinião é que só quem acredita em fadas acha que não 
existe nenhum arquivo. A própria Aeronáutica cedeu vários deles para o 
Arquivo Nacional.
 
 
Pessoalmente, como o senhor se vê neste processo?
 
Pinheiro - Somos um grupo muito integrado, de grande coesão. Todos já
trabalhamos, em algum momento, um com o outro. E temos uma equipe
extraordinária de assessores e consultores, além do apoio da 
Presidenta Dilma, sem interferência de nenhum ministro. O apoio 
material do governo também é muito maior do que eu podia supor.
 
 
Como o senhor analisa as críticas feitas às funções e
formato da Comissão antes da aprovação da lei?
 
Pinheiro - Essas críticas vieram de setores que desejavam uma Comissão 
da Verdade com funcionamento de tribunal. Ora, nenhuma das quarenta 
Comissões da Verdade, inclusive a da África do Sul, teve poder 
judicial. O importante é que nossa comissão tem mais poderes do que 
qualquer outra da América do Sul e Central no século XXI, porque temos 
o poder de convocar qualquer cidadão ou cidadã. Funcionários civis e 
militares então, nem se fala! E os que não vierem, denunciaremos ao 
Ministério Público Federal. Em segundo lugar, temos acesso
a qualquer arquivo, não importa seu grau de sigilo. Nos ministérios, 
já temos acesso a documentos secretos e ultrassecretos. Em terceiro, 
ao contrário do Poder Judicial, por causa da Lei da Anistia e do 
acórdão do Supremo Tribunal Federal, temos o mandato de indicar a 
autoria e as circunstâncias em que foram cometidos os assassinatos, as 
torturas, os desaparecimentos forçados e a detenção arbitrária.
 
 
Houve afirmações também de que a Comissão não conseguiria
trabalhar por conta da decisão do STF sobre a Lei de Anistia.
 
Pinheiro - Foi outra choradeira. Não tem nada a ver uma coisa com a 
outra. A Lei da Anistia não nos atrapalha nem ajuda, é algo que não 
nos impede de fazer o que a Comissão nasceu para fazer. O relatório 
final vai indicar a autoria e as circunstâncias em que esses crimes 
foram cometidos pela ditadura.
 
Considerando sua experiência em direito internacional e o
conflito entre a decisão do STF sobre a Lei de Anistia e a decisão da 
Corte Interamericana no caso Araguaia, existe a possibilidade de, no 
relatório final da Comissão, haver uma recomendação para que a Justiça 
responsabilize os responsáveis pelas violações de direitos humanos 
durante a ditadura?
 
Pinheiro - Não sei. Felizmente ainda temos vinte meses para resolver 
essa questão das recomendações. A posição de todos os membros da 
Comissão da Verdade, inclusive a minha, que fui membro por oito anos 
da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e apoiei a decisão do 
presidente Fernando Henrique, em 1998, de reconhecer a competência da 
Corte Interamericana, é que uma decisão da Corte deve ser cumprida 
pelo Estado brasileiro. A doutrina do direito internacional 
interamericano diz que as autoanistias não são válidas, e a anistia no 
Brasil, como já falei muitas vezes, foi uma autoanistia. O Supremo não 
entendeu assim, mas não cabe a mim nem à Comissão da Verdade ficar 
contestando essa decisão. É algo que cabe ao Estado
brasileiro, e isso não nos atrapalha.
 
 
O senhor concorda com a estratégia do Ministério Público
de abordar judicialmente crimes como o desaparecimento e a ocultação 
de cadáveres como crimes não prescritos, para poder responsabilizar os
perpetradores?
 
Pinheiro - Não tenho competência para avaliar se é uma boa ou uma má
estratégia. Só posso dizer da minha satisfação em ver o Ministério 
Público Federal e o Sistema Judiciário brasileiro assumindo seu papel 
dentro dos ditames da lei, que dão a eles alguma possibilidade de 
ação. Digo a mesma coisa sobre outras condenações que estão surgindo. 
Tenho a maior alegria em ver o resultado de casos como o [do coronel 
Carlos Alberto Brilhante] Ustra [declarado torturador pelo Tribunal de 
Justiça de São Paulo, em agosto último], especialmente pelo que isso 
significa para as famílias dos que foram torturados e assassinados. 
Essa manifestação dos tribunais brasileiros é algo que dá grande 
conforto e esperança às famílias.
 
 
Por outro lado, há setores que ainda reagem aos avanços. O
Grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, teve sua sede invadida. É 
de se esperar que, com o funcionamento da Comissão da Verdade, 
conflitos sociais venham à tona para disputar diferentes visões sobre 
este período na sociedade?
 
Pinheiro - Nós estamos numa democracia. No Brasil vigora a liberdade 
de opinião, as pessoas e a imprensa são livres para se expressar. Mas
evidentemente não se pode cometer crimes, como essa invasão da sede do
Tortura Nunca Mais, que deve ser investigada. Desde que a expressão 
dessas opiniões não seja traduzida em crimes, as pessoas são livres 
para pensar o que quiserem sobre a Comissão da Verdade. Não espero 
unanimidade.
 
 
Um dos objetivos da Comissão da Verdade é a promoção da
reconciliação nacional. Qual a sua leitura sobre esse conceito?
 
Pinheiro - Este termo está presente na lei que criou a Comissão e na
denominação de várias outras comissões da verdade pelo mundo. Mas 
enquanto não tivermos bem encaminhados na reconstrução da verdade, é 
muito cedo para se discutir reconciliação. Também depende do que vamos 
encontrar; a reconciliação pode ocorrer na dinâmica do processo. As 
vítimas querem antes saber sobre a autoria, as circunstâncias e a 
responsabilidade do Estado, para então fazer esse trajeto da 
reconciliação. Mas não somos nós que vamos guiá-las. Este é um tema 
para o Estado brasileiro.
 
 
Quando a lei que cria a Comissão aponta no sentido da
reconciliação, ela sinaliza uma preocupação com o legado da ditadura 
nos dias de hoje. Na sua avaliação, esse legado persiste?
 
Pinheiro - O entulho autoritário continua, por exemplo, na parte da 
tortura. Não tem jornalista ou preso político torturado, mas é um 
vexame que isso ainda continue. Execuções sumárias pelas polícias 
militares do Rio de Janeiro e de São Paulo também são intoleráveis. A 
democracia não pode continuar a conviver com isso. Também não pode 
conviver com o ensino nas Forças Armadas ainda passar uma visão da 
ditadura militar totalmente positiva, como se não existissem os crimes 
que estamos discutindo. O processo, dinâmica e as recomendações da 
Comissão podem contribuir para superar esse legado autoritário. Por 
outro lado, uma das minhas tarefas na Comissão é reconhecer onde que 
progredimos. Senão, nos daríamos um atestado de incompetência total.
 
Quais os grandes gargalos que o país ainda enfrenta na
garantia dos direitos humanos?
 
Pinheiro - Ainda que tenhamos caminhado na luta contra a pobreza 
extrema, além dos direitos econômicos e sociais, o gargalo são os 
direitos civis e a defesa dos direitos das minorias. A situação 
subalterna ainda prevalece nos direitos econômicos e sociais, por 
exemplo, para a maioria afro-descendente. É importante reconhecer que 
o Brasil teve uma continuidade na política de direitos humanos. As 
violações continuam, mas não são mais uma política de Estado.
 
Apesar de a violação de direitos humanos não ser mais
política de Estado, ainda há políticas de Estado que possibilitam a
violação?
 
Pinheiro - Mas não é o Estado que organiza os crimes cometidos por 
seus agentes. As violações hoje cometidas por agentes do Estado nos 
estados da Federação não são coordenadas como foram durante o regime 
militar, o que já é uma diferença extraordinária. Continuará a haver 
problemas, porque a caminhada dos direitos humanos nunca termina. 
Temos uma porção de problemas, mas é preciso olhar para o que avançou 
para reexaminar em que falhamos e o que deu certo.

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