Durante mais de uma década de Era Hartung, poucos ousaram desafiar a política de incentivos fiscais do governo. Mas parece que essa realidade está próxima de ser alterada. E a reação partiu de onde menos se esperava. Da Assembleia Legislativa, que cada vez mais se apresentava como mero cartório do Palácio Anchieta. O responsável por isso também é inusitado: o ex-presidente da Casa, Theodorico Ferraço (DEM).
No início do ano, o deputado estadual octogenário, com mais de cinco décadas de vida política, viu ruir seus planos de se reconduzido à Presidência do Poder Legislativo. Foi derrotado pelo jovem Erick Musso (PMDB). A manobra teve clara interferência do governo, que colocou sua “tropa de choque” em campo para desidratar a candidatura do demista.
Em reação à verdadeira rasteira tomada na eleição da Assembleia, Ferraço foi ao palácio para anunciar pessoalmente ao governador sua desistência de concorrer ao cargo. Numa tarde de segunda-feira, o velho Ferração adentrou no gabinete de Hartung, lhe disse poucas palavras e saiu de repente – deixando todos surpresos, inclusive, o governador, que ficou prostrado em sua cadeira.
A vingança já esperada por Hartung parece ter chegado com o projeto de lei (PL 90/2017), protocolado na última semana e lido nessa segunda-feira (27), que volta atrás na convalidação dos benefícios fiscais do Programa de Incentivo ao Investimento no Espírito Santo (Invest-ES), em vigor desde o ano passado.
Além do fim da “anistia” de Hartung aos incentivos manifestamente irregulares, Ferraço aponta que as concessões lesaram os cofres públicos em quase R$ 20 bilhões. Uma quantia significativa a qualquer tempo, mas que ganha relevo diante da atual crise econômica enfrentada pela União e estados – sem contar na população que mais sofre com os cortes nos investimentos públicos.
De uma só vez, Ferraço atinge com o projeto o coração da política de incentivos de Hartung, baseada na concessão de benefícios em larga escala sem levar em consideração o seu retorno social. Seja pelo fim da convalidação dos antigos incentivos, concedidos por decreto e não por lei específica ou pela crítica aos efeitos danosos da renúncia fiscal para a população.
Mais do que a polêmica sobre a concessão de incentivos, a renúncia fiscal é um tema sério a ser enfrentado neste debate. Também não é possível admitir a falta de transparência pelo governo em relação aos benefícios. Neste caso, o próprio Ferraço nada fez para combater isso, já que durante seu período à frente da Assembleia, o Legislativo foi responsável pelos maiores retrocessos neste sentido.
Vale lembrar que os deputados aprovaram nos últimos dois anos, sempre a mando do governo, duas leis que convalidaram benefícios irregulares, assim como uma Emenda Constitucional que desobrigou o Estado de fornecer informações sobre incentivos fiscais. Mesmo sem constar o voto de Ferraço – o presidente se abstém –, não se pode negar sua responsabilidade por aceitar colocar propostas do gênero em votação.
Mas agora retornando ao mérito desta coluna, é necessária a pressão popular para que o projeto de lei pelo fim da anistia aos benefícios irregulares possa tramitar – e ser votado. Isso porque dificilmente a ampla maioria governista na Casa deve permitir uma tramitação em regime de urgência, como acontece em quase todas as matérias oriundas do Palácio Anchieta. Já na tramitação ordinária, o maior desafio deverá ser superar o crivo das comissões permanentes, amplamente dominada pelos “fiadores” da rasteira dada em Ferraço.
A Comissão de Justiça deverá ser a primeira a ser ouvida, podendo jogar uma pá de cal na intenção do autor do projeto. Ela é comandada justamente pelo líder do governo, Gildevan Fernandes (PMDB), um fato que já é absurdo. Além disso, os demais membros têm uma relação de fidelidade – e submissão – ao governo, são eles: Luzia Toledo (PMDB), Dary Pagung (PRP), Janete de Sá (PMN), Rafael Favatto (PEN), Marcelo Santos (PMDB) e Raquel Lessa (SD).
Caso a proposta siga tramitando, o texto deverá ser apreciado pela Comissão de Finanças, igualmente composta por fieis seguidores do Palácio Anchieta. O colegiado é presidido por Dary Pagung, contando com os deputados-membros Almir Vieira (PRP), Enivaldo dos Anjos (PSD), Jamir Malini (PP), vice-líder do governo, além de Luzia Toledo (PMDB). As exceções na comissão são os deputados José Esmeraldo (PMDB) com rompantes de independência, e Euclério Sampaio (PDT), único claramente desalinhado com a política hartunguete.
Diante desse cenário, resta apenas a mobilização popular e das entidades da sociedade civil – até o momento, inertes às polêmicas e desmandos da gestão Hartung – para garantir o prosseguimento do debate sobre o PL 90/2017. E que os deputados estaduais entendam a sua verdadeira missão: servir ao povo capixaba e não exclusivamente ao Palácio Anchieta.