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Ribeira dos arrecifes

Um dos muitos lugares onde já morei foi Recife, a mais antiga capital brasileira,  e embora guarde saudades dessa ensolarada cidade, a primeira vez em que lá cheguei quase se tornou a última. Tentando unir o útil ao que deveria ser agradável, fomos de carro, aproveitando as férias escolares dos filhos, o verão, a chance de conhecer o litoral bordado de  praias com cenários de cartão postal e fartura de água de coco… De carro. De Vitória a Recife?
 
Bem, sobrevivemos. Antecipando a chegada da família à terra do frevo e dos Freires, o local da futura residência já estava a nosso dispor, com um mês de aluguel pago adiantado, como é ou era a praxe – um prédio simpático, brilhando de novo, com um apartamento no andar de cima e uma loja no térreo. Tudo moderninho e bem acabado, numa rua de bom movimento, como convém  à instalação de um negócio que se espera ser lucrativo.
 
Como chegamos um dia antes do previsto, estava ainda sujo das obras há pouco encerradas, mas estávamos tão entusiasmados que não tivemos dúvidas – arregaçamos as mangas e munidos de farto material de limpeza, pusemos mãos à obra. Quer dizer, nosso primeiro dia no Recife foi dedicado à intensa faxina, pelo menos no andar superior. A loja podia esperar a faxineira já contratada para o dia seguinte. 
 
Quando tudo ficou brilhando e cheirando a limpeza, estávamos mortos de fome e saímos para procurar um lugar para comer. Já era tarde e ficamos ali mesmo no ‘Recife’, que é como os locais chamam o centro da cidade. Não seria nessa noite que conheceríamos os bairros nobres à beira mar. Primeira surpresa, a avenida antes movimentada e cheia de vida parecia o Tibete –  nenhum carro à vista, a não ser o nosso, estacionado em frente. Povo menos ainda. Restaurante, pizzaria, lanchonete, ou mesmo um bar aberto? Nenhum.
 
Numa loja fechada  vimos luz acesa por baixo da porta, e batemos para pedir alguma informação. O vigia abriu uma minúscula portinhola e mal mostrou a cara. Perguntado onde se poderia comer ali por perto, foi taxativo, “São gente de fora, né? O doutor fique sabendo, é melhor não ficar com essas moça bonita (três filhas) andando por aí a essa hora da noite. Põe o carro numa garagem se não quer ficar sem ele, e tranque bem as portas e janelas”.
 
“Estamos morrendo de fome, não tem pelo menos uma pizzaria aqui perto?” O cara não estava para meios-termos,  “Melhor dormir com fome. E se não tem garagem, pode botar o carro dentro da loja, que cabe”. Bateu a portinhola na nossa cara, mas logo abriu outra vez, “Olha, doutor, se tiver algum problema, nem a polícia tem coragem de vir aqui lhe socorrer. Se é que o senhor me entende…”
 
Entendemos. Entramos correndo no carro e fomos procurar um hotel para dormir, do outto lado das muitas pontes.  Nem as malas pegamos. No dia seguinte procuramos o dono do imóvel para anular o contrato de aluguel, já assinado e lacrado. “O senhor está desmoralizando minha propriedade!” Meu marido explicou que não queria morar e trabalhar em um local que precisava de vigia noturno armado trancado por dentro. “Isso é um exagero, a área tem grande demanda, não tem nenhum imóvel desocupado em toda essa avenida…”
 
Mesmo no prejuízo, perdendo o que já havia sido pago, saímos atrás de outro lugar para morar e mercadejar. Devo confessar, nos três anos que moramos no Recife, nunca tivemos problema de assalto ou sofremos qualquer tipo de constrangimento. E ainda hoje me pergunto, quem estava certo, o apavorado vigia ou o ansioso dono do imóvel?
 
 

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