Quinta, 25 Abril 2024

Sabiás sem noção

 

A primavera enche de flores as árvores urbanas, num convite  silencioso à reflexão sobre o futuro de nossas cidades atordoadas pela correria da sobrevivência. A esta altura, querida prima, ouso lembrar que a pergunta remanescente é: haverá futuro?
 
Para as árvores, sim. Elas têm cada mais dióxido de carbônico para assimilar. Para os humanos civilizados, há controvérsias e sobram dúvidas, pois as cidades se tornaram locais por demais inóspitos e perigosos. Além dos riscos oferecidos pelo crescente trânsito de máquinas, tornaram-se mortais as disputas por espaços nos mercados como o das drogas ilegais.  
 
Mas para que não digam que não falei de flores, vejam como é bonito, poético até, os zeladores dos prédios varrendo as calçadas.
 
Varrer pela manhã, eis um bom exercício. Eles não usam apenas vassoura. Carregam consigo uma pazinha, um balde e um saco plástico. Além disso, manejam uma mangueira com que borrifam água sobre os arbustos mijados pela crescente população canina.
 
Veja, em cada quarteirão das capitais há pelo menos uma loja de artigos e serviços para animais domésticos. Um quilo de ração para cachorro custa mais do que outro tanto de carne de frango ou porco para consumo humano. O banho simples de um guaipeca não sai por menos de 20 reais. Cuidar desses pequenos animais tem sido a salvação profissional de muitas jovens veterinárias.
 
Sim, muitas cidades começam a criar secretarias dos direitos dos animais, não raro confiadas às primeiras damas municipais. Cuidam dos carroceiros, legislam sobre o recolhimento de cocô animas nas calçadas e por aí vão.
 
Em capitais onde é mais premente o apelo telúrico, como Porto Alegre, sabe-se de pessoas que criam de jaguatirica a lebre em apartamentos. Não foi à toa que proliferou em anos recentes a moda dos iguanas. Crianças mais ou menos mimadas têm o direito de ter em casa um ratinho indiano muito mais engraçadinho do que os hamsters.         
 
Seria possível escrever um livro sobre o afã humano de recuperar o contato com a vida primitiva mediante a aquisição e o aprisionamento de animais que, mesmo confinados a ambientes pouco saudáveis, sem liberdade de movimentos, restituem às pessoas um  pouco de afeto, dando-lhes a sensação de que a humanidade ainda pode ser salva dessa vida cachorra de funcionário disso ou daquilo.
 
Voltemos às nossas humildes calçadas de outubro/novembro onde já começa o delírio anual dos jasmineiros com seu perfume narcotizante. A profusão de flores amarelas e azuis no chão lembra as luminosas paisagens campestres de Van Gogh. Por aí se confirma a impressão de que o futuro das árvores parece garantido. Quanto ao lado humano dessa  história... 
 
À tarde, complementando o trabalho matutino dos zeladores, faxineiras parrudas fazem musculação varrendo as folhas restantes do inverno findo e as pétalas sobrantes da primavera emergente.
 
Nessa faina predomina nitidamente o amarelo das flores dos guapuruvus, das sibipurunas e das tipuanas, mas qual o futuro dessas operárias obesificadas pelo consumo compulsório de anticoncepcionais, carboidratos e telenovelas? Sombrio, no mínimo.
 
Mas só não vê quem não quer: o espetáculo exuberante da vegetação urbana excita a passarada vinda dos campos e matos. Afinal, na cidade é grande a sobra de comida, inclusive para animais quase invisíveis, como baratas, cupins e ratos.
 
Onde vai parar esse trem urbano doido que a cada ano incorpora mais três milhões de veículos às cidades brasileiras?
 
A resposta talvez esteja no canto alucinado dos sabiás que corta as madrugadas urbanas e invade os apartamentos. Confusos pelas luzes dos prédios e das ruas, eles assobiam dia e noite, sem noção das horas, como cucos de um relógio desregulado.
 
 
LEMBRETE DE OCASIÃO
 
“Esgueira-se a folha
pela janela. Vem
dizer-me: primavera”
 
Marien Calixte, Livro de Haikais, 1990

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