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São Salim e Tio Mujica

Agora que por defender a legalização da maconha o presidente uruguaio Mujica está em vias de se tornar uma espécie de divindade latinoamericana, colocando-se ao lado de Che Guevara, Evita Perón, Fidel Castro, Zumbi dos Palmares e Tiradentes, torna-se oportuno registrar a fugaz existência entre nós brasileiros do culto a São Salim, um preto véio entronizado por volta de 1970 no nordeste paulista, região que possui vínculos históricos com alguns dos maiores vícios da humanidade – a produção e o consumo de café, cana e chope.
 
A devoção a esse santo de barro, parecido com São Benedito (de quem seria na verdade um clone), começou a ser cultivada por um simpático matemático que, além de lecionar em escola pública, dava aulas particulares de xadrez durante as quais (as partidas de xadrez) pregava o bom uso das drogas por jovens e adultos. Naturalmente, o guru era barbudo. Seu templo fora construído junto a uma antiga jazida de basalto, desmanchada para render alicerces de casas e paralelepípedos urbanos.
 
Com o cabelo afro feito de bombril e uma túnica psicodélica, São Salim tinha uns 30 centímetros de altura e ficava sobre um toco ao lado da porta do templo. Todos que entravam ali faziam uma genuflexão e o sinal da cruz ao passar pelo santinho. Para alguns era sagrado, para outros brincadeira, mas não havia fiscalização nem repressão quanto à sinceridade dos devotos. Tampouco havia dízimo, se bem que o Pastor aceitava doações em espécie como garrafas de conhaque e broinhas temperadas com sementes de erva-doce e similares. Dependendo da preferência pessoal por isso ou aquilo, cada devoto costumava acrescentar um sobrenome ao nome do santo, que podia ser tratado como São Salim Pingão, São Salim Maconhão, São Salim Cocão etc. 
 
Alguns iam ali para aprender, outros para se divertir simplesmente. A regra era buscar o autoconhecimento, mais ou menos como acontece na União do Vegetal e no Santo Daime, em cujos rituais se usa um chá resultante da decocção do mariri e da chacrona, dois vegetais comuns na Amazônia. “As drogas fazem parte da bagagem que o homem criou para atravessar esse vale de lágrimas”, ensinava o Guru, lembrando sempre que a vida terrestre é mera “sombra” enquanto todos nós caminhamos para a luz. Por isso, argumentava ele, seria burrice manter as coisas na situação atual em que algumas drogas são legalizadas embora façam mal à saude, enquanto outras são proibidas quando podem fazer bem. Como no  caso dos remédios, basta saber a posologia. Com isso ele se antecipava a decisões liberalizantes tomadas posteriormente na Califórnia, em Amsterdam, Barcelona e finalmente agora no Uruguai.    
 
Segundo o Professor, para evitar os males do tráfico ilegal, a educação sobre drogas deveria fazer parte do currículo escolar dos ensinos fundamental, médio e superior. A teoria seria facilmente colhida em livros de botânica, fisiologia, farmacologia e história. Bastaria ter bom senso e agir sem preconceito, o que é bastante difícil quando se trata de drogas. “Diante de qualquer droga”, observava ele, “muitas pessoas tendem a ficar loucas antes mesmo de usá-las”.  Exatamente por isso a prática se tornou tão complicada, derivando frequentemente para o lado da patologia, às vezes com consequências nefastas. Segundo o Mestre, tudo isso poderia ser evitado por meio do consumo consciente e ponderado, individualmente ou em grupos restritos reunidos em recantos tranquilos junto à Natureza. Como fazem, por exemplo, os bons consumidores de cerveja, vinho e ópio.    
 
O importante, ensinava, é saber usar corretamente cada droga. Dependendo da dose e da frequência, as drogas podem levar à excitação intelectual, ao relaxamento corporal, à obesidade, à perda temporária da memória, ao descalabro financeiro e à morte moral e física. O êxtase raramente se alcança e algumas vezes é viagem sem retorno. Em cada cidadezinha do interior há pelo menos um exemplo de zumbi que passou dos limites. Raras pessoas encontram um grau de satisfação com o consumo de substâncias capazes de alterar o humor ou a percepção. Por isso é preciso difundir informações corretas sobre as drogas. Além do uso moderado, o Profeta ensinava que cada um devia tratar de descobrir qual seria a sua própria droga. Quem gosta de cerveja que faça bom uso dela, mas não se deixe dominar pelo hábito/vício de consumi-la em excesso.
 
Tentando dar um passo à frente e se fazer entender, o Mestre criou uma tabela de correspondência entre o consumo de cada droga e seus efeitos. Ele partia da convicção de que as sociedades modernas treinam as crianças no uso de drogas desde a mais tenra idade, começando pela oferta de mamadeiras de leite com açúcar em substituição ao leite materno. Considerando que até o século XV o açúcar era uma droga vendida por gramas em farmácias, é fácil provar que houve uma enorme deturpação no consumo do açúcar como adoçante alimentar na vida moderna. Disso resultou uma subversão dos paladares, predispondo os organismos humanos a consumir crescentes volumes de refrigerantes, carnes vermelhas, bebidas alcoólicas — com suas consequências corporais: obesidade, colesterol elevado, angústia, depressão etc.  
 
Nas sociedades de consumo aceleradas pela propaganda, dizia o Mestre, tornou-se praticamente obrigatório embarcar na viagem do consumo das drogas. As propagandas de cervejas, na TV, induzem os jovens a beber imoderadamente. Nesses comerciais, os consumidores são representados por jovens beberrões que parecem passar a vida numa  competição idiota para parecer avançados, inteligentes e bem-sucedidos. Algo semelhante é (era) transmitido nos comerciais de cigarro, proibidos por interferência dos governos de diversos países.
 
A tudo isso associa-se a mistificação armada pelos provedores de drogas para induzir ao consumo. É “legal” fumar, cheirar é “um barato”, injetar-se é “o máximo” e assim por diante. Na sociedade de massas, há pessoas que se comprazem em deixar-se tanger como rebanhos por gurus endeusados pela mídia dinheirista. Aí estão os templos religiosos cheios de gente carente saudando em altos brados os pastores-empresários. Todos querem um contato com a divindade, nem que seja no berro ou na marra.  
 
Dito isso, apresentamos abaixo uma amostra grátis da tabela organizada pela pastoral de São Salim para orientar os seus seguidores. Como a tabela foi remontada a partir de um modelo válido para a realidade do último quartel do século XX, não consta o grau de periculosidade do crack, inexistente na época. Por isso essa droga ultramoderna ficou de fora, mas é razoável acreditar que o guru a colocaria no grau máximo de risco, ou seja, 10 pontos.
 
 
As drogas e seu grau de periculosidade:
 
 
Ingrediente/matéria-prima                 Pontuação*
 
 
Mamadeira de leite com açúcar        1 ponto
 
Sangria de vinho                                   1,5 pontos
 
Refrigerantes                                         2 pontos
 
Cerveja e outros alcoois                     3 pontos
 
Tabaco                                                    4 pontos
 
Maconha                                                 5 pontos
 
Ópio                                                        6 pontos
 
Cocaína                                                 7 pontos
 
Barbitúricos em geral                         5 a 10  pt
 
LSD, mescalina, beladona               8 pontos
 
Heroína                                                9 pontos
 
 
* Pontuação estabelecida por critério subjetivo do guru e sem avaliação técnica. Os riscos à saúde aumentam com a dosagem e a frequência de uso. Há drogas que geram dependência.    
 
 
LEMBRETE DE OCASIÃO
 
“El diaolo ‘i fà la pignata, ma nò ‘l coercio”
 
O DIABO ENSINA A FAZER A PANELA, MAS NÃO A TAMPA
 
Provérbio da colônia italiana gaúcha recolhido por Roni Dall’Igna e Asir Beltram

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