Duas frases são lembradas quando se analisa o quadro assustador da tortura institucionalizada em presídios e delegacias capixabas, praticada por agentes do Estado, que deveriam ser exemplo no cumprimento das leis, proteção e serviço à sociedade.
A primeira é até bíblica: “Quem não tem pecado que atire a primeira pedra”, atribuída a Jesus e proferida por ele a um grupo que se preparava para apedrejar uma mulher adúltera em local público. Já a segunda, citada em voto recente do desembargador Pedro Valls Feu Rosa, que condenou três agentes penitenciários, é de Vitor Hugo: “Ninguém é mal, e quanto mal foi feito!”.
Em seu voto, o próprio desembargador justifica o emprego da frase do escritor francês: “Nos últimos dias, recebi em meu gabinete pessoas, muitas das quais de boa índole. Pessoalmente, poucos dias depois, recebi os apelantes. Vi, diante de mim, pessoas educadas, inteligentes, sociáveis e, sobretudo, cristãs – um deles, inclusive, é pastor de uma igreja. Nunca se espere delas, por exemplo, que, fora do ambiente prisional, deixem alguém acorrentado a uma parede por horas a fio, em posição de sofrimento… Mas lá estavam eles, filmados, a fazer dentro dos presídios o que fora deles condenariam! Sem perceber, enquadravam-se no “sistema”, sob o qual o mal torna-se uma banalidade”.
Definido como imposição de dor física ou psicológica, a tortura é uma forma de intimidação ou meio utilizado para obtenção de uma confissão ou alguma informação importante. Utilizada como prática contra presos políticos na época da ditadura militar, ainda é um mal presente. “É delito imprescritível, inafiançável, não sujeito a graça e anistia”, como dispõe o Artigo 5º inciso XLIII da Constituição Federal. Também integra a Lei de Crimes Hediondos, comparada aos delitos de tal gravidade. É condenada também por tratados internacionais e pode gerar penas de reclusão ou de detenção de dois meses a oito anos.
E o que justificaria agentes do Estado a transgredir tantas leis? Na cultura judaica antiga, mulheres adúlteras, mais que torturadas, mereciam também a morte e, além disso, a humilhação pública. Mas quem eram seus algozes? Aqueles, que, depois de constatarem que cometiam seus próprios delitos, foram embora sem lançar única pedra sequer.
Assim, um importante recado é transmitido pela metáfora bíblica: as pessoas que lotam os presídios e que chegam a mais de 20 mil no Estado, são, como diria o trocadilho, “gente como a gente”, “como eu e você”, nem melhores nem piores.
Os que estão nos presídios foram, sim, condenados por seus delitos com a pior de todas as penas: a restrição da liberdade. Mas, convenhamos, a Justiça não abraça a todos os piores criminosos. Como dito e redito, o Brasil é o país da impunidade, sobretudo para os ricos e para quem têm poder e influência política.
Quem é, então, essa gente que, mesmo pagando pelos seus erros, não merece misericórdia? Como bem alertou o professor do curso de Direito da Ufes e da FDV, Thiago Fabres, as unidades presionais não abrigam as pessoas mais perigosas da sociedade. Não custa repetir que a massa carcerária capixaba é formada por jovens, negros e pobres, condenados, em sua maioria, por crimes ao patrimônio e o varejo do tráfico de drogas. Esses são nada menos que 78% do total. Condenador por homicídio, por exemplo, são em torno de 18%.
O desembargador Pedro Valls Feu, em uma lucidez incrível, compreende que não é ao acaso que a prática da tortura é um crime que lesa a humanidade como um todo. Primeiro porque, como já dito, todos estão sujeitos ao erro. Segundo porque sofrem danos irreparáveis tanto quem é torturado quanto quem tortura. Nesse último caso, para o magistrado, tais agentes fazem parte de um “sistema” em que a prática foi institucionalizada e banalizada:
“Falemos, agora, sobre os que gerem nossos presídios, Vítimas deste 'sistema', quantos não sofrem até que a eles se entreguem? Qual o preço espiritual que vão pagando, ao longo de sua existência? Como se reflete a brutalização de seus sentimentos sobre suas famílias? Quantos, no recato de seus corações, não lamentam terem encontrado este 'sistema', quando simplesmente procuravam trabalho?
Sim, há que romper este ciclo. Há que se chamar a atenção para este sério problema – que, de resto – passa desapercebido para uma imensa parte da população, segundo a qual “tudo seria aceitável contra certo tipo de gente”.
Depois disso, doutor Pedro Valls Feu Rosa, nada mais se tem a declarar!