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Uma pedra é uma pedra

Muitas pedras, na verdade. Eu criança, ainda na minha saudosa e alvissareira Alegre, curtindo meus doces primeiros sonhos, e de repente minha rua é sacudida por um vândalo jogando pedras nos telhados alheios. Não pequenas, minúsculas pedras, mas grandonas, perturbando o sossego e  quebrando as telhas. Isso em tempo de chuvas.
 
Os ataques persistiram por dias e dias, e não sei por que – nem ninguém me explicou –  todos me acusavam do delito. Talvez porque as pedras nunca fossem atiradas no nosso telhado, mas mesmo assim, tinha mais duas irmãs morando na mesma casa. As vizinhas me cercavam em suas portas quando eu passava –  “É  você, tenho certeza!” Meus pais me punham de castigo, “Se não parar com isso vai ficar sem cinema domingo!”
 
Cinema, naqueles tempos, só aos domingos, condicionado a bom comportamento e boas notas. “Juro que não sou eu!” jurava eu, mas ninguém me ouvia. “Por que eu? Alguém viu pra me acusar?” Mas todos insistiam – “Só pode ser você!” E como as pedras continuavam caindo, meus pais me puseram de castigo na despensa, que com a lâmpada queimada ficava escura, mesmo durante o dia. A pequena janela pouco clareava, mas deixava ver o quintal dos vizinhos mais próximos.
 
E foi assim que assisti, estupefata – ainda se usa essa palavrinha? –  a vetusta vizinha, senhora bem casada e bem comportada, cheia de filhos já crescidos, se debruçando sobre nossa cerca para fiscalizar nosso quintal – vazio a essa hora. E não vendo ninguém, Boom! Pegou uma pedra numa pilha que mantinha no canto do tanque e a atirou certeiramente no telhado oposto! Nem acreditei nesses olhos que a terra há de comer! Ou não, que talvez eu deixe ordens escritas para ser cremada… dependendo do preço.
 
Quase sem fôlego, atropelando as palavras, corri pra contar pra minha mãe –  “Mãe, é a Dona X que tá jogando as pedras!” Mamãe ficou brava, “Deixa de ser mentirosa e volta já pro seu castigo!” Criança naquele tempo não tinha voz, não tinha crédito, não tinha vez., mas por fim resolveu me ouvir e ficou  horas na dispensa, esperando… Até que a respeitada senhora voltou para a segunda rodada de pedras ao telhado…
 
Mamãe convocou as outras vizinhas, e na manhã seguinte houve reunião na nossa pequena despensa, devidamente regada a bolos, biscoitos e sucos de groselha. As madames ficaram horas espremidas no pequeno compartimento, meio que duvidando, mas esperando…  que nem o trem, o bonde, o fim do campeonato, o fim do mundo. Só que, diferente da espera pelo aumento do salário, que nunca chega, a vizinha por fim veio se exibir diante da plateia ansiosa.

 

Deixei bem claro que eu era criança, e que criança naqueles tempos não tinha vez. Portanto, a) ninguém veio me agradecer por ter solucionado o crime; b) ninguém me pediu desculpas por me acusarem injustamente; c) ninguém me contou o que aconteceu com a vizinha, cujo nome aqui não revelo, não por discrição, mas porque esqueci. Correram boatos de que o marido deu-lhe uma boa surra, mas continuando com minha vigília na despensa, nunca ouvi gritos na casa ao lado.

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