Agosto chega revelando movimentos societais de acordes dissonantes e fraturas sociopolíticas. Estes movimentos aparecem nas eleições municipais brasileiras; no “momentum” dos ciclos político e econômico brasileiro; nas essências e aparências das eleições norte-americanas; e no recrudescimento dos conflitos e inseguranças gerados pelo avanço do Estado Islâmico sobre a Europa e adjacências.
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As eleições municipais brasileiras contém, de saída, o DNA da desconexão sociopolítica entre a sociedade e o establishment. Esta desconexão é tanto produto do recrudescimento, na recessão, da exclusão social, quanto do aumento da relevância social da chamada “geração nem-nem” e do precariado. Tudo conjugado com o avanço do anacronismo do sistema político, em particular o sistema eleitoral e o sistema partidário.
Tudo convergindo para a recorrente queda na entrega de serviços públicos essenciais – saúde, educação, segurança – e para o avanço de um círculo vicioso de exclusão social e desigualdades. Retrocessos em marcha que se mostrarão, sutil ou abertamente, no debate político-eleitoral – por ação ou omissão.
Acordes dissonantes, algaravias políticas, alienação eleitoral. Se o voto não fosse obrigatório, provavelmente esta alienação seria colossal.
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O “momentum” dos ciclos político e econômico brasileiro também contém o DNA da desconexão sociopolítica, nas essências e aparências. A movimentação ainda ambígua do governo interino de Michel Temer nada mais é do que um produto desta desconexão. Se não assumir politicamente a sua natureza interina – e depois de transição – o governo Temer pode acabar desnudando a desconexão ainda mais e reabrindo a panela de pressão na/da sociedade.
Os ciclos político e econômico se esgotaram. É disto que se trata. Ou bem o governo assume esta essência de transição e implementa uma Agenda de transição para um novo ciclo, a ser eleitoralmente legitimado pelas eleições de 2018, ou mal vamos retroceder ao quadro social de anomia dos estertores do governo Dilma.
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As eleições americanas refletem a nova clivagem política que perpassa a ordem mundial, retratada há pouco por matéria do prestigioso “The Economist”– uma nova linha de clivagem política: não mais entre direita e esquerda, mas entre”abertos” e “fechados”, entre os que defendem fronteiras abertas e os que querem fechá-las.
Esta clivagem reacende o debate em torno dos malefícios e equívocos da globalização, em termos de exclusão e desigualdades, ao mesmo tempo em que aumentam as preferências por argumentos ultranacionalistas, xenófobos, populistas e autoritários. Donald Trump é um produto dessa nova divisão. Ela penetra nos EUA e na Europa.
O debate seguirá o seu curso. Como minimizar o mal estar da globalização, com suas desigualdades e exclusões, sem precisar gerar um mundo de países murados, que provavelmente seria mais pobre e perigoso. The Economist acelerou e retomou este debate da nova linha divisória da política. Joseph Stiglitz também retornou ao debate dos efeitos da globalização (“O ´novo´mal-estar na globalização”, O Globo, 07/08/2016).
No meio do debate, os formadores de opinião nos EUA e na Europa parecem concluir que “o futuro da ordem mundial liberal depende da vitória de Hillary Clinton” ( The Economist, “The new divide in rich countries is not between left and right but between open and closed” , 30/06/2016).
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Uma nova classe social estaria por trás da explosão de raiva dos eleitores do mundo ocidental desenvolvido: o precariado, como foi descrita por Guy Standing a crescente massa de pessoas que vivem em permanente insegurança em relação a seus empregos, rendas, vida. Desde 2011, Standing alerta que a insegurança que caracteriza essa classe teria um impacto nocivo no cenário político, como, de resto, está tendo ( Guy Standing, “O precariado-A nova classe perigosa” , 2011 & Entrevista à Época, 01/08/2016).
Segundo Standing, o precariado está desafiando as tradicionais estruturas políticas a se reinventar. Isso, é óbvio, também vale para o Brasil. Para ele, “o precariado consiste nas pessoas que se mantêm com empregos temporários, de meio período, casuais. São milhões de pessoas, muitas com educação superior ou diploma de ensino médio, que estão sendo postas em circunstâncias nas quais elas não têm uma narrativa ocupacional que possam dar a sua vida. Isso cria uma insegurança existencial, porque elas sentem que não pertencem à sociedade” ( Época). Insegurança, frustração, ansiedade, endividamento, alienação, anomia, e raiva.
Esta raiva, no dizer de Standing, está “favorecendo políticos populistas e neofascistas na Europa e nos Estados Unidos” (Época). E fornecendo “matéria prima” para a atuação do Estado Islâmico.
Alguma semelhança com a recente experiência brasileira? Isso ajuda, ou não, a explicar os vestígios de acordes dissonantes e as desconexões sociopolíticas no Brasil?