Sexta, 03 Mai 2024

???A Secult virou um escritório de representação do Sincades???

???A Secult virou um escritório de representação do Sincades???

 

Rogério Medeiros e Henrique Alves
Fotos: Gustavo Louzada
 
"Um país não muda pela sua economia, sua política e nem mesmo sua ciência; muda sim pela sua cultura"

Betinho
 
Membro da Câmara de Música do Conselho Estadual de Cultura (CEC) desde 2009, Fraga Ferri já há um bom tempo critica com reflexões lúcidas e palavras severas as relações entre a Secretaria de Estado da Cultura (Secult) e o Instituto Sincades. Está tudo lá em seu blog, para quem quiser ler.
 
Ao gosto da gestão Paulo Hartung (2002-2010), em que foi concebida, tal parceria passou ao largo de qualquer questionamento. “Até hoje não tem prestação de conta, até hoje não tem ata de como isso é gerido, das reuniões”, critica Ferri.
 
Amparada numa política específica de renúncia fiscal, o Instituto Sincades - entidade criada em 2008 pelo Sindicato do Comércio Atacadista e Distribuidor do Espírito Santo (Sincades) - apareceu a partir do mesmo 2008 como grande apoiador de produções culturais capixabas. 
 
Entre outros pontos, Fraga Ferri levanta suspeições, legítimas porque pertinentes, que pairam sobre a relação Secult/Sincades. Nada contra vendedores de batata, cebolas, comerciantes ou atacadistas. Mas ele destaca a estranheza que causa a delegação à iniciativa privada, realizada via dinheiro público, de apoio a projetos culturais.  
 
Século Diário - O que te levou a ser um crítico do Instituto Sincades? 
 
Fraga Ferri - Seria a minha indignação. Eu sou uma pessoa ligada ao acesso coletivo, ao fazer política pública. A gente luta tanto por leis, por verbas, por incentivos. E quando se vê, e você fazendo parte de um conselho, que está ali estabelecido para discutir como é que as políticas, como as verbas vão chegar à maioria da população, e cria uma mecanismo desse, totalmente à revelia de qualquer tipo de consulta, de questionamento, de quais são as prioridades, e vincula isso a um instituto de iniciativa privada, isso me deixou muito indignado. Assim como a outros companheiros do conselho.
 
- Mas o dinheiro que se movimenta não é do Sincades. É dinheiro público...
 
- Exatamente.
 
- Ele deixa de pagar o imposto e ainda põe o nomezinho dele nos projetos.
 
- E sem prestar conta de nada, né?
 
- Aproveitando essa questão, queria que você explicasse como é que funciona isso. 
 
- Funciona basicamente via renúncia fiscal. Em agosto de 2008 o então governador Paulo Hartung promulgou um Contrato de Competitividade, através do qual ele promovia uma renúncia de imposto, em torno de 33%. Há aí uma série de filigranas econômicos e fazendários que devem ser desvendados por um especialista da área. Em suma, as empresas ligadas ao comércio atacadista têm um desconto e parte dele vai obrigatoriamente direto para a conta do Instituto Sincades. 
 
- Aí o vendedor de batata, cebola, é que escolhe os projetos?
 
- É o que define o que é cultura.  
 
- Mas há o Conselho. Eles dominam o Conselho?
 
- A gente não tem acesso a nenhum tipo de informação. Até hoje não tem prestação de conta, até hoje não tem ata de como isso é gerido, das reuniões. Nos editais da Secult, por exemplo, o artista está condicionado a uma série de exigências, legais, de prestação de contas...
 
- Já o Instituto Sincades...
 
- Agora, o Sincades, que tem acesso a um montante aí de, não sei, calcula-se algo entre R$ 70 e R$ 80 milhões, o que se diz é algo em torno disso, dinheiro público, dinheiro do Estado, e não presta conta de como esse dinheiro é gerido, o que é feito com ele, de que forma são escolhidos os projetos. Então a coisa fica muito obscura, né? A gente no Conselho luta por tudo isso, transparência, por acesso a verbas, que no mecanismo deles - além da prepotência - é desconsiderar toda a organização social e política que nós como artistas representamos no Conselho. E também desvincular o estado da penúria que é o setor produtivo-cultural do Espírito Santo, estado que é a sexta ou sétima economia do país, é um dos mais violentos do Brasil...
 
- O segundo. De vez em quando arrisca tomar de Alagoas o primeiro lugar...
 
- Temos bairros periféricos de 60 mil habitantes, Feu Rosa, Vila Nova de Colares, os mais violentos, em que você não tem um aparelho cultural, um centro cultural que seja. Os recursos têm. Agora o que a gente quer é que eles sejam partilhados e que a população possa construir a sua dimensão simbólica e não transformar isso em violência, do jeito que está sendo feito.
 
- Vocês do Conselho já requisitaram informações à Secult, ao governo do Estado, sobre o funcionamento dessa parceria?
 
- A gente tem acesso ao contrato. Na gestão passada fizemos algumas incursões para poder pedir esclarecimentos. A nova gestão está um pouco mais aberta para fazer isso. Nós estamos aguardando para saber como isso funciona. Porque, até então, é uma verdadeira caixa-preta.
 
- Mas você como membro do Conselho pode requisitar todos os deferimentos que houve.
 
- A gente tem que estabelecer isso no Conselho. É bom deixar aberta a questão de que o Conselho tem feito pedidos para esclarecimentos. Até porque isso envolve também a Secretaria da Fazenda e uma série de organismos do próprio Estado, o vínculo, a legalidade, como foi instituído. Porque realmente é uma engenharia complexa de renúncia fiscal. Agora, ela é uma renúncia fiscal que dá o privilégio a uma instituição da iniciativa privada de gerir o destino da cultura capixaba. A Secult virou praticamente um escritório de representação do Sincades.
 
- Você questiona, mas não pede informações?
 
Peço, mas peço no Conselho. É uma reunião por mês e o Conselho tem várias prioridades. As respostas demoram. Mas posso esclarecer isso aí. 
 
- Quais empresas têm tido mais êxito nos projetos? 
 
Essa informação eu não tenho. Mas você vê os eventos patrocinados pelo Sincades: A Bela e a Fera, as exposições de fora...
 
- As exposições são aquelas realizadas no Palácio Anchieta?
 
- Principalmente essas no Palácio.
 
- São pagas por eles?
 
- Isso. Só você vê a logomarca do Sincades lá. Alguns musicais estilo “Broadway” que vieram aí. Vários deles. São os eventos mais significativos. 
 
- Mais significativos porque recebe mais dinheiro?
 
- Creio que sim.
 
- E simbolicamente porque eles não vão colocar o nomezinho deles em qualquer evento...
 
- É. Enquanto isso, por exemplo, no edital passado, um deles era para pequenos projetos, como compra de indumentárias de grupos folclóricos, que é em torno de R$ 10 mil. E dos projetos, somente 20% foram contemplados. São pequenos projetos que contemplariam, por exemplo, atividades culturais no interior, de grupos de resistência que fazem a cultura. 
 
Na verdade, isso é projeto político e ideológico neoliberal de controle da cultura. Então, o Cais das Artes, por exemplo, a grande defesa para o Cais é que ele vai colocar o Espírito Santo no cenário cultural dos grandes eventos e que vai formar plateia. Mas o artista se forma com a plateia. Ele não forma plateia, a plateia forma ele.
 
O Espírito Santo não conhece seus artistas. Nós temos a massificação, a cultura, a mídia televisiva. A gente sabe que estamos numa era da informação. Mas propagar o que é o Espírito Santo culturalmente, nem uma TV estatal consegue divulgar. Então, os artistas fazem circulação pelo estado e vão lá duas, quatro, seis pessoas. 
 
Quando um artista da Globo vem fazer um evento, aparece a propaganda “Teatro, a gente vê por aqui”. 
 
- Tem o caso do artista que passou por aqui e levou uma grana, né?
 
- Tem o caso absurdo do Márcio Garcia [o ator, e agora diretor de cinema, filmou alguma cenas Open Road em Vitória], que levou R$ 800 mil.
 
- Sincades também.
 
- Isso. Via Sincades.
 
- Você se lembra de outros casos assim? Porque isso é uma loucura, é dinheiro público.
 
- Isso, se não for ilegal, é imoral. Quer dizer, é imoral, desrespeitoso, arrogante e não condiz com aquilo que deve ser a base do gestor público, que é o interesse da coletividade. Isso é uma afronta às pessoas que estão buscando promover uma política realmente cultural, porque essa política não é para o artista, é para as pessoas terem o acesso. 
 
Por que lá na periferia, por exemplo, as pessoas não podem ter um centro cultural para que eles possam se conhecer, se identificar e se construir a partir de uma expressão artística, a música, o teatro, o desenho, o hip hop, a dança? Elas não têm nem a oportunidade de fazer isso.
 
- E quem determina são comerciantes, atacadistas...
 
- Exatamente. Não têm vínculo nenhum. Eu participo de reuniões e seminários sobre cultura há pelo menos 20 anos e o presidente do Sincades [Idalberto Luiz Moro] eu nunca soube que ele estivesse presente a alguma dessas reuniões. Ele se tronou o rei da cultura capixaba, que determina a morte e a vida da arte do Espírito Santo.
 
- No momento sua luta é uma luta isolada, mas você deve arregimentar companheiros no caminho... O que nós queremos aqui é questionar isso. Se o dinheiro é do governo, que o governo dite a cultura.
 
- Eu não estou isolado nesse caso. Grande parte das pessoas se omite por conta de interesses pessoais e porque em Vitória as coisas se propagam rápido. Eu mesmo já tive alguns trabalhos cortados. Claro que não foi explicitamente, mas sei que por conta das minhas posições.
Mas o Conselho tem sido ativo. A gente tem brigado pelo Plano Estadual de Cultura, pela ampliação das verbas, por exemplo, para os editais, que praticamente dobraram. Mas essa questão do Sincades é emblemática, porque é desrespeitosa e imoral. É muito dinheiro na mão de quem não devia estar. Esse dinheiro tem que vir para a gestão pública.
 
- Para quem entende de cultura...
 
- Para quem está dentro do processo. Não para um ou para outro, mas para a coletividade. Onde esse dinheiro tem que ser aplicado? A ministra da Cultura, Marta Suplicy, falou há pouco tempo, numa entrevista: “dinheiro público tem que ser para gestão pública”. 
 
- E pega uma pessoa que está acostumada a comerciar batata – nada contra, é uma atividade digna como outra qualquer - mas não é dele o ramo da cultura. Então os espetáculos com dinheiro público só virão com a aprovação deles.
 
- E essa é a visão da cultura que vem de fora, a superior é que vem de fora. É a cultura feita a partir do Cais das Artes – e não que eu ache que não tenha de ter um aparelho cultural. Em São Paulo, a maioria dos espetáculos é realizada em pequenos espaços. Há, claro, os grandes espaços. Agora no Espírito Santo, onde acho que nem 20% dos municípios têm um teatro ou sequer um centro cultural, eu acho desrespeitoso você construir uma coisa daquela, antes de você construir um lastro que permita às pessoas se formarem.
 
- Agora eu vi que o governo federal, junto aos governos estadual e municipal, quer fazer um projeto de cultura. Mas como, se no Espírito Santo ela está nas mãos de vendedor de cebola, batata, e, em Vitória,  da Vale?
 
- Isso aí é o grande problema para a gente pensar: o que é a cultura do Espírito Santo? Ela está privatizada, isso é verdade.

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