Rogério Medeiros e Henrique Alves
Fotos: Gustavo Louzada
“Um país não muda pela sua economia, sua política e nem mesmo sua ciência; muda sim pela sua cultura”
Betinho

Ao gosto da gestão Paulo Hartung (2002-2010), em que foi concebida, tal parceria passou ao largo de qualquer questionamento. “Até hoje não tem prestação de conta, até hoje não tem ata de como isso é gerido, das reuniões”, critica Ferri.
Amparada numa política específica de renúncia fiscal, o Instituto Sincades – entidade criada em 2008 pelo Sindicato do Comércio Atacadista e Distribuidor do Espírito Santo (Sincades) – apareceu a partir do mesmo 2008 como grande apoiador de produções culturais capixabas.
Entre outros pontos, Fraga Ferri levanta suspeições, legítimas porque pertinentes, que pairam sobre a relação Secult/Sincades. Nada contra vendedores de batata, cebolas, comerciantes ou atacadistas. Mas ele destaca a estranheza que causa a delegação à iniciativa privada, realizada via dinheiro público, de apoio a projetos culturais.
Século Diário – O que te levou a ser um crítico do Instituto Sincades?
Fraga Ferri – Seria a minha indignação. Eu sou uma pessoa ligada ao acesso coletivo, ao fazer política pública. A gente luta tanto por leis, por verbas, por incentivos. E quando se vê, e você fazendo parte de um conselho, que está ali estabelecido para discutir como é que as políticas, como as verbas vão chegar à maioria da população, e cria uma mecanismo desse, totalmente à revelia de qualquer tipo de consulta, de questionamento, de quais são as prioridades, e vincula isso a um instituto de iniciativa privada, isso me deixou muito indignado. Assim como a outros companheiros do conselho.
– Mas o dinheiro que se movimenta não é do Sincades. É dinheiro público…
– Exatamente.
– Ele deixa de pagar o imposto e ainda põe o nomezinho dele nos projetos.
– E sem prestar conta de nada, né?
– Aproveitando essa questão, queria que você explicasse como é que funciona isso.
– Funciona basicamente via renúncia fiscal. Em agosto de 2008 o então governador Paulo Hartung promulgou um Contrato de Competitividade, através do qual ele promovia uma renúncia de imposto, em torno de 33%. Há aí uma série de filigranas econômicos e fazendários que devem ser desvendados por um especialista da área. Em suma, as empresas ligadas ao comércio atacadista têm um desconto e parte dele vai obrigatoriamente direto para a conta do Instituto Sincades.
– Aí o vendedor de batata, cebola, é que escolhe os projetos?
– É o que define o que é cultura.
– Mas há o Conselho. Eles dominam o Conselho?
– A gente não tem acesso a nenhum tipo de informação. Até hoje não tem prestação de conta, até hoje não tem ata de como isso é gerido, das reuniões. Nos editais da Secult, por exemplo, o artista está condicionado a uma série de exigências, legais, de prestação de contas…
– Já o Instituto Sincades…
– Agora, o Sincades, que tem acesso a um montante aí de, não sei, calcula-se algo entre R$ 70 e R$ 80 milhões, o que se diz é algo em torno disso, dinheiro público, dinheiro do Estado, e não presta conta de como esse dinheiro é gerido, o que é feito com ele, de que forma são escolhidos os projetos. Então a coisa fica muito obscura, né? A gente no Conselho luta por tudo isso, transparência, por acesso a verbas, que no mecanismo deles – além da prepotência – é desconsiderar toda a organização social e política que nós como artistas representamos no Conselho. E também desvincular o estado da penúria que é o setor produtivo-cultural do Espírito Santo, estado que é a sexta ou sétima economia do país, é um dos mais violentos do Brasil…
– O segundo. De vez em quando arrisca tomar de Alagoas o primeiro lugar…

– Vocês do Conselho já requisitaram informações à Secult, ao governo do Estado, sobre o funcionamento dessa parceria?
– A gente tem acesso ao contrato. Na gestão passada fizemos algumas incursões para poder pedir esclarecimentos. A nova gestão está um pouco mais aberta para fazer isso. Nós estamos aguardando para saber como isso funciona. Porque, até então, é uma verdadeira caixa-preta.
– Mas você como membro do Conselho pode requisitar todos os deferimentos que houve.
– A gente tem que estabelecer isso no Conselho. É bom deixar aberta a questão de que o Conselho tem feito pedidos para esclarecimentos. Até porque isso envolve também a Secretaria da Fazenda e uma série de organismos do próprio Estado, o vínculo, a legalidade, como foi instituído. Porque realmente é uma engenharia complexa de renúncia fiscal. Agora, ela é uma renúncia fiscal que dá o privilégio a uma instituição da iniciativa privada de gerir o destino da cultura capixaba. A Secult virou praticamente um escritório de representação do Sincades.
– Você questiona, mas não pede informações?
Peço, mas peço no Conselho. É uma reunião por mês e o Conselho tem várias prioridades. As respostas demoram. Mas posso esclarecer isso aí.
– Quais empresas têm tido mais êxito nos projetos?
Essa informação eu não tenho. Mas você vê os eventos patrocinados pelo Sincades: A Bela e a Fera, as exposições de fora…
– As exposições são aquelas realizadas no Palácio Anchieta?
– Principalmente essas no Palácio.
– São pagas por eles?
– Isso. Só você vê a logomarca do Sincades lá. Alguns musicais estilo “Broadway” que vieram aí. Vários deles. São os eventos mais significativos.
– Mais significativos porque recebe mais dinheiro?
– Creio que sim.
– E simbolicamente porque eles não vão colocar o nomezinho deles em qualquer evento…

Na verdade, isso é projeto político e ideológico neoliberal de controle da cultura. Então, o Cais das Artes, por exemplo, a grande defesa para o Cais é que ele vai colocar o Espírito Santo no cenário cultural dos grandes eventos e que vai formar plateia. Mas o artista se forma com a plateia. Ele não forma plateia, a plateia forma ele.
O Espírito Santo não conhece seus artistas. Nós temos a massificação, a cultura, a mídia televisiva. A gente sabe que estamos numa era da informação. Mas propagar o que é o Espírito Santo culturalmente, nem uma TV estatal consegue divulgar. Então, os artistas fazem circulação pelo estado e vão lá duas, quatro, seis pessoas.
Quando um artista da Globo vem fazer um evento, aparece a propaganda “Teatro, a gente vê por aqui”.
– Tem o caso do artista que passou por aqui e levou uma grana, né?
– Tem o caso absurdo do Márcio Garcia [o ator, e agora diretor de cinema, filmou alguma cenas Open Road em Vitória], que levou R$ 800 mil.
– Sincades também.
– Isso. Via Sincades.
– Você se lembra de outros casos assim? Porque isso é uma loucura, é dinheiro público.
– Isso, se não for ilegal, é imoral. Quer dizer, é imoral, desrespeitoso, arrogante e não condiz com aquilo que deve ser a base do gestor público, que é o interesse da coletividade. Isso é uma afronta às pessoas que estão buscando promover uma política realmente cultural, porque essa política não é para o artista, é para as pessoas terem o acesso.
Por que lá na periferia, por exemplo, as pessoas não podem ter um centro cultural para que eles possam se conhecer, se identificar e se construir a partir de uma expressão artística, a música, o teatro, o desenho, o hip hop, a dança? Elas não têm nem a oportunidade de fazer isso.
– E quem determina são comerciantes, atacadistas…
– Exatamente. Não têm vínculo nenhum. Eu participo de reuniões e seminários sobre cultura há pelo menos 20 anos e o presidente do Sincades [Idalberto Luiz Moro] eu nunca soube que ele estivesse presente a alguma dessas reuniões. Ele se tronou o rei da cultura capixaba, que determina a morte e a vida da arte do Espírito Santo.
– No momento sua luta é uma luta isolada, mas você deve arregimentar companheiros no caminho… O que nós queremos aqui é questionar isso. Se o dinheiro é do governo, que o governo dite a cultura.

Mas o Conselho tem sido ativo. A gente tem brigado pelo Plano Estadual de Cultura, pela ampliação das verbas, por exemplo, para os editais, que praticamente dobraram. Mas essa questão do Sincades é emblemática, porque é desrespeitosa e imoral. É muito dinheiro na mão de quem não devia estar. Esse dinheiro tem que vir para a gestão pública.
– Para quem entende de cultura…
– Para quem está dentro do processo. Não para um ou para outro, mas para a coletividade. Onde esse dinheiro tem que ser aplicado? A ministra da Cultura, Marta Suplicy, falou há pouco tempo, numa entrevista: “dinheiro público tem que ser para gestão pública”.
– E pega uma pessoa que está acostumada a comerciar batata – nada contra, é uma atividade digna como outra qualquer – mas não é dele o ramo da cultura. Então os espetáculos com dinheiro público só virão com a aprovação deles.
– E essa é a visão da cultura que vem de fora, a superior é que vem de fora. É a cultura feita a partir do Cais das Artes – e não que eu ache que não tenha de ter um aparelho cultural. Em São Paulo, a maioria dos espetáculos é realizada em pequenos espaços. Há, claro, os grandes espaços. Agora no Espírito Santo, onde acho que nem 20% dos municípios têm um teatro ou sequer um centro cultural, eu acho desrespeitoso você construir uma coisa daquela, antes de você construir um lastro que permita às pessoas se formarem.
– Agora eu vi que o governo federal, junto aos governos estadual e municipal, quer fazer um projeto de cultura. Mas como, se no Espírito Santo ela está nas mãos de vendedor de cebola, batata, e, em Vitória, da Vale?
– Isso aí é o grande problema para a gente pensar: o que é a cultura do Espírito Santo? Ela está privatizada, isso é verdade.