“Até que os leões inventem suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça”, com esse provérbio africano, Mia Couto inicia seu 12º livro, A Confissão da Leoa (2012). A simples frase pode se tornar grandiosa se comparada a vida do povo africano, que precisou reconstruir toda a sua história em detrimento da versão heróica dos colonizadores do século XVII. Mia Couto é um desses homens que se dispôs a contar as histórias do seu país.
Nascido em Moçambique, o escritor escolheu retratar o ambiente rural do país a partir de uma experiência própria. Em 2008, Couto foi convidado a integrar uma expedição ambiental para o norte de Moçambique, durante sua estadia no local começaram a ocorrer diversos ataques de leões a pessoas, principalmente mulheres. No livro, o escritor Gustavo Regalo é inspirado no autor, mas ele é um personagem totalmente secundário a trama é focada nos moradores da aldeia e no caçador Arcanjo Baleiro.
A história se passa toda na aldeia de Kulumani, onde o caçador Arcanjo é chamado para matar os leões e o escritor Gustavo para registrar tudo. Porém, a volta do caçador a comunidade preocupa Hanifa, mãe da jovem Mariamar. A mulher acredita que os leões são criaturas mágicas que não se pode matar com balas. Os diálogos entre a família de Hanifa permitem que o leitor fique totalmente imerso na cultura africana.
A Confissão da Leoa é dividido em dois tipos de relatos em primeira pessoa, que se alternam em capítulos. Versão de Mariamar, a jovem da aldeia, e Diário do Caçador, de Arcanjo Baleiro. Aos poucos os personagens vão contando seus segredos mais íntimos, a paixão secreta de Arcanjo pela mulher do irmão, o qual está em um hospício, e o medo e o ódio que Mariamar sente do pai e as saudades de seu avô, o único que parecia lhe respeitar.
O sotaque moçambicano e a prosa poética peculiar de Mia Couto dão o tom à obra que revela que as verdadeiras feras estão dentro da aldeia, são os homens, eles que devoram as suas mulheres. Reprimidas por um sistema patriarcal e violento, as mulheres são condenadas a uma situação de submissão intolerável. Nas palavras de Genito, pai de Mariamar, “Aqui não há policia, não há governo, e mesmo Deus só há às vezes”.
Todas devem se casar sem conhecer o amor e terem filhos sem saber serem mães, Marimar parece destoar dessa regra. Com o poder da escrita, ela tranforma papel e lápis em armas para se defender. Com o retorno do caçador a aldeia, a moça também sonha em fugir com ele.
Mia Couto mostra um povo que se apega ao mágico e as lendas para explicar a condição miserável que se encontram. Diferente das obras anteriores, o escritor opta por uma linguagem com menos neologismos e mais simples. Mesmo tratando de lendas, crenças e sonhos premonitórios, A Confissão da Leoa não é um livro de realismo fantástico é apenas uma história do cotidiano, que de tão melancólica consegue aproximar da realidade.
Serviço
A Confissão da Leoa
Mia Couto
Companhia das Letras
251 páginas
R$ 39,50 em média