Sexta, 03 Mai 2024

Contornos nebulosos envolvem contrato entre Sincades e Secult

Contornos nebulosos envolvem contrato entre Sincades e Secult

Uma das interessantes empreitadas culturais juvenis da última década nasceu em 2009 e chama-se Programa Rede Cultura Jovem (PRCJ). Muitas ideias-na-cabeça de jovens capixabas foram/estão sendo bancadas pelo “Rede”. Até há pouco, a sede ocupava uma ampla sala no Edifício Arábica, na Enseada do Suá. Não mais. Perguntem ao Sincades o motivo.  

 


Não, o Rede Cultura Jovem não acabou. Mas definhou. Hoje é um vulto daquilo que um dia foi e/ou sonhara ser. O PRCJ inclui-se no desmedido rol de ações apoiadas pelo Instituto Sincades, entidade criada pelo Sindicato do Comércio Atacadista e Distribuidor do Espírito Santo (Sincades), com aval da Secretaria de Estado da Cultura (Secult) e do Governo do Estado. O que em 2009 era a solução, em 2012 virou problema. 
 
Não é qualquer um que se instala no coração financeiro do Espírito Santo. O Rede gozou do privilégio. Chegou lá em 2010. O espaço era grande, arejado, asseado. Na extensa sala de reuniões, uma mesa dominava o recinto de fora a fora. Da janela via-se um recorte idílico de Vitorinha: prédios, a Terceira Ponte e, ao fundo, o mar.
 
Ali o programa tocava suas sete ações (Revista Nós, Yah TV, Portal Yah, Núcleo de Conexão, Editais – em 2012 foram aprovados 73 projetos -, Mostras Capixabas Audiovisuais, Formação Agente Cultura Jovem), fora outras de que participava como parceiro. Projeções informais dão conta de que o programa atendeu diretamente mais de 13 mil jovens de todo o Espírito Santo - do campo, da cidade, do asfalto, do morro.
 
De um ano para cá, as relações entre o instituto e o programa se deterioraram - e em detrimento do PRCJ. Críticas levianas a projetos pesaram o ar do Arábica. De repente, a verba para as ações escasseou. A postura impositiva e arbitrária de uma certa figura começava a se sobressair. Era gerente-executivo do Instituto Sincades. Seu nome é Dorval de Assis Uliana.
 
Demissões sumárias (estilo novela das oito, que provocariam o pasmo e a revolta do público) também compõem o enredo. A equipe de 13 pessoas foi reduzida a cinco. Não há programador para atualizar o site - o Portal Yah – nem diretor para o Yah TV (na foto acima, em ação numa mostra audiovisual em Feu Rosa, Serra)
 
Ali deu-se um episódio canhestro: o instituto confiscou todo o equipamento da Yah TV. Não poupou nem um mísero carregador de pilha. O servidor com todos os programas do projeto também foi embora. 
 
Há um mês a equipe do programa está asilada na Secult. Os recursos que saem do instituto cobrem apenas os salários dos cinco sobreviventes e os editais 2012 (que expiram em dezembro). Afora isso, o mistério e o silêncio envolvem o custo dos bons tempos do PRCJ para o Sincades.
 
A relação Sincades/PRCJ é emblemática para se entender uma certa mecânica de apoio cultural. Um antes vigoroso projeto foi desmantelado sem explicações. Não sucumbiu, mas desidratou-se gravemente. 
 
O caso expõe a fragilidade dessa índole de mecenato: ele depende menos da qualidade dos projetos que do humor das planilhas financeiras. Onde agentes viram uma rede ativa, criativa e colaborativa, o Sincades viu um hortifruti. A expectativa é que em 2013 o PRCJ seja mantido diretamente pela Secult.
 
Criado em 2004 pelo governo Paulo Hartung, o Contrato de Competitividade (Compete-ES) visa fortalecer a capacidade competitiva das empresas locais, via desoneração tributária. Hoje os contratos refugiam 21 setores da economia capixaba. O celebrado com o Sincades é o de número 15.
 


O sindicato foi fundado em 2007 e atualmente conta com 700 empresas filiadas. No ano seguinte foi fundado o Instituto Sincades, que, amparado numa política específica de renúncia tributária prevista no Compete-ES, vem apoiando inúmeras ações, entre projetos, espetáculos e eventos: musicais infantis como A Bela e a Fera (foto acima) e megaexposições no Palácio Anchieta estão entre as mais conhecidas. .
 
Os contratos de competitividade celebrados na Era Hartung são uma peraltice jurídica em pelo menos duas camadas. A primeira: conforme a Constituição Federal, a legalidade de renúncias fiscais ou qualquer modalidade de diminuição de arrecadação tributária depende de duas medidas: aprovação no Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) e, mais além, concessão por lei específica.
 
O Compete-ES não fez uma coisa nem outra. Há no Brasil uma prática legislativa, infelizmente comum nos estados, a que o jargão jurídico denomina “lei guarda-chuva”. São leis genéricas, que a rigor não dizem nada, das quais derivam leis específicas. 
 
A confluência das leis estaduais 7000/01 (autorizando a concessão pelo Poder Executivo, por regulamento, de regimes especiais de tributação, sem prévia ou posterior autorização da Assembleia Legislativa) e 7.457/03 (determinando que a Assembleia só seja comunicada posteriormente à concessão dos regimes especiais) forja o guarda-chuva em questão.
 
Ou seja, com base nessas leis tão peculiares, o governador baixa decretos concedendo incentivos. Ele porém não tem poder para isso, razão pela qual evita-se lei específica no início do processo: outro estado pode derrubá-la por Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin). 
 
Um grande e belo guarda-chuva abriga o Compete-ES. Um óbvio ululante: por sua natureza genérica, a “lei guarda-chuva” não ampara contrato com um setor específico, dando abatimento fiscal. Ao pé da letra, esse “jeitinho” pode redundar em improbidade administrativa, já que há ausência de lei, em conflito com a Constituição Federal.
 
Os iniciados no tema afirmam que, por si só, qualquer incentivo, quando não ilegal, é de constitucionalidade duvidosa. No caso aqui estudado, então, nem se fala. Se há lei específica, pode-se discutir sua constitucionalidade. Ok. O Compete-ES contudo se ressente de lei específica. Ele saiu da cabeça do governador em via expressa para o deleite de empresários. 
 
Em pronunciamento na sessão de segunda-feira (26), o deputado estadual Gilsinho Lopes (PR) cobrou do governo explicações sobre a relação Secult/Sincades. 
 
Foram palavras duras: “Esta Casa não aprovou qualquer lei autorizando parte do dinheiro dos impostos na área atacadista fosse destinado a uma entidade privada. O Instituto Sincades, nada mais é do que uma instituição privada administrada pelo próprio Sindicato”.
 
Argumentos cimentaram o discurso. O parlamentar evocou o artigo 167 da Constituição Federal, que proíbe a vinculação de receita de impostos a fundos e a instituição dos fundos sem a autorização do Legislativo. Lembrou também a LDO, segundo a qual a destinação de recursos públicos à iniciativa privada deve ser autorizada por lei específica, incluída na LDO e prevista no Orçamento. 
 
Agora a segunda camada de pura marotice jurídica. Esta alude estritamente ao caso Sincades.
 
Afora ser aprovado à revelia do Confaz, da Assembleia e de leis específicas, o Compete 15 empreende um lance mais temerário: obriga a contratada a contribuir para a cultura. Mas tal obrigação é uma parte de dinheiro, não recolhido de ICMS, que passa a ser administrado pelo sindicato através do Instituto Sincades. POLÊMICA: não seria isso um fundo cultural?
 
Novamente é mister conclamar o resguardo da Constituição Federal e das “leis específicas”. A criação de fundos - qualquer fundo - depende de lei específica. Outra: não se pode vincular receita de imposto, deturpando pois a finalidade deste. O estratagema permite a fuga a mecanismos de fiscalização (o Tribunal de Contas), uma vez que a verba não estará prevista no Orçamento.
 
Segundo preveem a Constituição e a Lei de Responsabilidade Fiscal, qualquer despesa deve obedecer à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), ao Plano Plurianual (PPA), à Lei Orçamentária Anual (LOA). E tudo isso tem de passar pela Assembleia Legislativa. 
 
Além disso, e tão importante quanto, é vedada a transferência, do público para o privado, da gestão de um fundo por tributo. Afinal falamos de verba pública. 
 
O auê vai de uma ponta à outra do processo. Há complicações também na saída. O Compete-ES 15 prevê que “a aplicação dos recursos será definida” por Comitê Gestor composto por um representante da Secult, da Secretaria de Estado de Desenvolvimento (Sedes), da Secretaria de Estado do Trabalho e Assistência e Desenvolvimento Social (Setades) e do Sincades.
 
Mas o contrato não pode atribuir funções às secretarias. Só a lei. Assim como apenas e tão-somente a lei poderia decidir o modelo de gestão do fundo por um ente privado. Ou seja, além do Sincades administrar o fundo, ele é um dos que possui o poder decisório sobre o uso da despesa. Mas, sem lei, um particular nunca poderia auxiliar na decisão. 
 
Mesmo assim, mesmo com uma esbórnia de travessuras jurídicas sambando na cara da sociedade, ninguém explica essa atração fatal, Secult/Sincades, Sincades/Secult. Amor não é. 


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