Molaa tem como sócio Matheus Noronha, irmão de Fabricio Noronha

A empresa Bossa Comunicação e Cultura foi habilitada, em 2024, a captar R$ 280,75 mil via Lei de Incentivo à Cultura Capixaba (Licc) para o projeto Gera.Ação – Oficinas Intergeracionais, que tem por objetivo fazer oficinas para crianças e idosos sobre “fotografia com celular”, “stop motion” e “podcast” em Colatina, noroeste do Estado. Bossa Comunicação e Cultura, porém, é o nome jurídico da Molaa Projetos, que faz parte da Molaa – Hub Criativo – e tem como sócio Matheus Noronha, irmão do secretário de Estado da Cultura, Fabricio Noronha.
De acordo com o Decreto Nº 5035-R/2021, que trata da regulamentação do incentivo fiscal para projetos culturais no Estado, é vedada a apresentação de projetos por “pessoa jurídica cujos proprietários, sócios ou diretores sejam cônjuges, companheiros ou parentes até terceiro grau, na linha reta ou colateral, consanguíneo ou afim, de servidor da Secretaria de Estado da Cultura”.
A Molaa Projetos, que tem como sócia Géssica Bossaneli Silva, faz parte de um “hub” com a empresa de Matheus Noronha, a Molaa Live – Comunicação e Cultura, a qual está inscrita em outro Cadastro Nacional de Pessoal Jurídica (CNPJ). Como explicou o próprio Matheus a Século Diário, um “hub” é semelhante ao “co-work”, quando duas empresas compartilham o mesmo espaço.
“Durante oito anos estivemos no Shopping Mestre Álvaro [Serra] e no último ano viemos para o Parque Moscoso [Vitória]. Nesse longo período, diversos CNPJs, MEIs e outros formatos de negócios nos transpassaram. Cada uma delas com sua independência em todas as instâncias: financeira, gerencial e criativa. Bossa comunicação nada responde a mim ou à minha gerência”, alegou Matheus.
Apesar disso, as duas empresas compartilham o mesmo site oficial e o mesmo portfólio, que inclui diversas ações na área audiovisual, como transmissões ao vivo e registro de eventos. O próprio projeto Gera.Ação teve uma edição anterior, de 2023, financiada pela Fundação Renova, entidade ligada à Vale.
Segundo Matheus, Géssica Bossaneli, “de fato, trabalha conosco e responde como Molaa em diversas ações. Principalmente nas relações com a Vale e a Fundação Renova, por exemplo”. Apesar disso, reforça que as duas empresas do hub criativo “são independentes e que ele não tem nenhuma participação no projeto habilitado na Licc pela Molaa Projetos”.
De acordo com informações do site oficial da Secult, a proposta da Molaa Projetos ainda está em fase de captação de recursos com a iniciativa privada – o prazo final para conseguir a verba é 5 de agosto deste ano.
A Molaa foi fundada oficialmente em 2015, e inaugurou seu espaço em 2018. Na época, o próprio Fabricio Noronha fazia parte do empreendimento. Ao anunciar nas redes sociais a sua desvinculação para assumir o cargo como secretário de Cultura, em janeiro de 2019, Fabricio deu um “até breve” ao projeto, em suas próprias palavras. A empresa anunciou que executou, somente em 2024, 272 projetos.
Participações
Em 2019, a Molaa foi a responsável pela produção executiva da websérie Com a Palavra, realizada com recursos de um edital do Fundo Estadual de Cultura (Funcultura), que também veda a participação de pessoas ligadas a servidores da Secult.
Além disso, a produtora já atuou em diversos eventos que recebem recursos da Secult – seja por meio da Licc ou de convênios diretos – como Festival de Cinema de Vitória, Festival Movimento Cidade e 10º Festival de Música Erudita do Espírito Santo.
Em 2022, o Hub Criativo da Molaa, que ainda funcionava na Serra, recebeu ações do Dia Mundial da Criatividade, evento que contou com o apoio da Secult – inclusive, representantes da secretaria estiveram no evento para falar sobre a Lei de Incentivo à Cultura Capixaba.
“De forma bem objetiva: todas as vedações são quanto à proponência, ou seja, por ser irmão do Fabrício não posso, de fato, ser proponente em nenhum projeto, seja do Funcultura ou da Licc. Além disso, todos esses eventos citados contam com diversas outras fontes de patrocínio, seja incentivo direto de empresas, Lei Rouanet e outros…o que só reforça nosso cuidado com essa relação. Participamos com muito orgulho e produzimos produtos incríveis para todos eles, de forma legítima, afetuosa e potente. Assim como fazemos com todos os nossos clientes”, argumentou Matheus.
Sobre a ação do Dia Mundial da Criatividade, o sócio da Molaa ressalta que recebeu o evento de forma voluntária. “Não vejo problema nisso, já que a criatividade está em nossa essência. Nesse mesmo dia, outras ações aconteceram também de forma gratuita no pátio do Shopping Mestre Álvaro, que também cedeu seu espaço. É assim que funciona o WCD [abreviação em inglês do evento] em todo o mundo”, disse.
Matheus destacou, ainda, a sua própria trajetória pessoal e a de sua empresa: “A Molaa, em seus quase 10 anos de atuação, tem realizado diversos projetos na área de audiovisual para grandes empresas e agências de comunicação, além de atender projetos e eventos culturais como um todo. Por aqui temos uma carteira ampla de clientes, como Vale, Águia Branca, Instituto Cultural Vale, Itaú Social e Fundação Renova, por exemplo. Esse reconhecimento se consolida através da minha trajetória pessoal, atuando há quase 15 anos na área e graduado pela Ufes em Cinema e Audiovisual, além de contar com o trabalho de diversos profissionais também super qualificados em seu quadro de funcionários e parceiros”.

‘Não há nenhum tipo de ingerência’
Também procurada por Século Diário, a Secretaria de Estado da Cultura alegou que a Bossa Comunicação e Cultura foi habilitada na Licc, mas não captou recursos, e “a empresa não pertence a nenhum parente de servidores, gerentes, subsecretários ou secretário da secretaria”.
Sobre a participação da Molaa no projeto Com a Palavra, informa que os recursos são de um edital de 2017, quando o secretário ainda era João Gualberto Vasconcelos. A respeito do evento do Dia Mundial da Criatividade, afirma que “a participação se limitou a uma palestra sobre a Licc, sem investimento financeiro”.
A Secult afirmou ainda que “não há nenhum tipo de ingerência da secretaria nas contratações realizadas pelos proponentes responsáveis pelos projetos”, e que a vedação da contratação de fornecedores da Licc “se limita a cinco produtos ou serviços por fornecedor e priorização de fornecedores do Espírito Santo, conforme artigo 30 da instrução normativa”.
Os projetos apresentados no âmbito dos editais e linhas de fomento, prossegue a Secult, “passam por etapas criteriosas de avaliação e seleção, realizadas por comissões julgadoras independentes e pareceristas especialistas de todo país, selecionados por meio de chamamento público, que avaliam os projetos prezando a legalidade, impessoalidade e transparência no serviço público”.
Funcultura e Licc
Desde 2009, o Funcultura atua como um mecanismo de repasse direto de recursos do Estado para projetos culturais que se inscrevem nos editais anuais. A seleção é feita por julgadores também selecionados por meio de edital, os quais não têm ligação direta com a Secult.
No caso da Licc, criada em 2022, trata-se de um mecanismo de renúncia fiscal. Os produtores precisam conseguir uma aprovação preliminar da Secult, para depois tentar a captação com a iniciativa privada. As empresas que topam participar ganham crédito presumido do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) – ou seja, 100% do dinheiro investido é abatido na hora de pagar os tributos ao Tesouro Estadual.
A Secult tem defendido que a Licc atende a uma demanda antiga do próprio setor, incentivando uma aproximação com a iniciativa privada e complementando os demais mecanismos de fomento. O mecanismo também é encarado como uma forma de os agentes culturais acessarem verbas bem maiores do que a dos editais, e de forma mais dinâmica, sem o processo de concorrência tradicional.
No entanto, a principal crítica a leis de incentivo como Licc e Rouanet é que os agentes culturais ficam à mercê das empresas, que não precisam arcar com nenhum prejuízo, já que o patrocínio será devolvido no abatimento de impostos. Para uma empresa como a Vale, por exemplo, responsável pelo maior crime socioambiental da história do Brasil e por décadas de poluição, investir na Licc é uma forma de lavar sua imagem sem precisar desembolsar um tostão sequer – e ainda podendo escolher os projetos que mais lhe convenham.
Além disso, esse tipo de fomento privilegia quem tem mais influência com as empresas, e não necessariamente quem mais precisa ou apresenta projetos melhores. “A Licc é também um mecanismo que produz desigualdade, concentração de recursos na região metropolitana e nos mesmos CNPJs, promove a ‘pejotização’ do trabalho. Pela sua característica, dificulta a aplicação de uma política pública que seja do interesse dos trabalhadores e da sociedade, uma vez que quem determina os investimentos é a iniciativa privada”, afirmou, em entrevista para Século Diário no último mês de março, Karlili Trindade, produtora cultural e integrante do Grito da Cultura, movimento de trabalhadores do setor.
“Durante muito tempo, o único mecanismo de financiamento foi o Funcultura, que em 2025 teve um investimento de R$ 7,6 milhões. A Licc teve investimento de R$ 25 milhões em 2024, com três anos de Lei. Hoje, é o mecanismo com maior investimento, atendendo grandes projetos”, complementou Karlili, que defende mudanças na legislação para tornar o mecanismo mais democrático.