Com um título bastante inusitado, B869.1 k96 é o novo livro de poesias publicado por Francis Kurkievicz, escritor paranaense radicado em Vitória desde 2012. “O título segue à risca as especificações de catalogação de obras literárias e documentos, que é a indicação da letra do sobrenome do autor e a posição numérica da primeira sílaba”. O autor conta que já recebeu mensagens de dois bibliotecários que adoraram a criatividade do título, pois o livro já vem classificado. “Mas também recebi críticas opostas, de quem achou o título antilírico ou difícil de memorizar. Outros amigos ainda não alcançaram a ironia do título”.
Mas para Francis, o principal do título raro é “sua impossibilidade de intuir-se o conteúdo, gerando curiosidade e despertando atenção”. Autodefinido como poeta libriano com ascendente em gêmeos, budista de esquerda, romântico desiludido, que ainda acredita no livro de papel, o autor parece bastante afeito a remar contra a corrente e fugir do óbvio.
Reunindo 70 poemas de versos livres, a obra sai pela Patuá, editora paulista que é uma das mais importantes da cena literária independente nacional. O ano de escrita da obra é o difícil 2018, “cheio de perplexidades e reflexões”. “Depois do assassinato de Marielle Franco, em março de 2018, uma nuvem escura se cristalizou no horizonte de minha intuição. Um sinal de alerta acendeu em mim e na minha poesia, e me lembrei da Nina Simone falando do compromisso do artista com o contexto social e político de seu momento”, relembra.
B869.1 k96 não chega a ser um livro tão político, mas foi escrito pelo autor junto com O Sorriso Aflito do Palhaço Derrotado, ainda inédito, ao qual representa um contraponto, segundo Francis Kurkievicz. “Mas cada um expressa um ânimo diferente diante da realidade daquele ano. O Poema n. I do B869.1 k96 insinua elementos políticos e as configurações se reorganizando na mente do poeta daquele momento. Um sinal de dúvida, uma perspectiva de decisão, uma retomada de posição, tanto política quanto espiritual”.
O escritor indica não ser muito consciente sobre seu estilo de escrita, pois este pode variar de acordo com o poema, o livro, o gênero. “A minha principal preocupação na hora de escrever é estar consciente do que está sendo dito, como está sendo dito, o que é que está sendo dito e qual o efeito que se busca no que foi dito. A ideia, o sentido, a essência do poema é meu principal interesse, a linguagem e o estilo são arranjos espontâneos que florescem do próprio poema”, relata.
Seu caminho, afirma, é a busca de compreender a viagem existencial que vivemos, a mutalibilidade de tudo, a relação de sua mente com fenômenos supostamente externos, a ironia de perceber o vazio das coisas, a unidade de tudo numa mesma essência. “A característica de minha poesia, poderíamos assim afirmar, é a busca da consciência poética do universo”.
Nascido na cidade portuária de Paranaguá, viveu por cerca de 20 anos em Curitiba até desembarcar na também portuária Vitória, há oito anos. “Decidi vir para cá movido por uma intuição de que, aqui, a minha carreira literária ganharia um impulso e ganharia rumo. E isso tem acontecido”.
Sua produção literária aumentou, conheceu muitos escritores capixabas e participou do circuito literário do Sesc. Porém, boa parte da vasta produção de Francis Kurkievicz nos últimos anos permanece inédita. Não é um caso único, diz, já que tem outros amigos na mesma situação. “No meu caso deve ser karma, pois desde 1988, quando formatei meu primeiro livro de poemas, saí batendo na porta de diversas editoras e nunca obtive resposta. Essa rotina dietética segue até hoje”.
Ele também considera que talvez não tenha levado muito a sério sua produção poética nos primeiros anos, já que andava mais focado na dramaturgia, mas também com múltiplos interesses em paralelo. “Em tudo coloquei intensidade e espírito. Mas em 2008 tive essa iluminação: que eu deveria concentrar esforço, propósito, interesse em apenas uma área, um ofício, um caminho. Então retomei a produção poética e a busca de editoras. Mas só agora aconteceu”, conta.
A ponte com a Patuá surgiu em 2015, quando Francis conheceu o diretor da editora, Eduardo Lacerda, num evento literário realizado em Vitória. O editor pediu que enviasse seus escritos para a Patuá, o que fez por alguns anos até que o livro viesse por fim ser lançado. A previsão era para março deste ano, prazo adiado como tantas outras obras à espera de tempos melhores que permitissem realizar eventos de lançamento, importantes para valorizar, visibilizar e também vender as obras. A pandemia não passou, e o livro já começou as pré-vendas, saindo com a marca do ano pandêmico.
Em nove anos de existência, a Patuá já lançou mais de mil títulos com objetivo de impulsionar autores que ainda não encontram espaço nas grandes editoras, sendo que alguns deles conquistaram importantes prêmios literários brasileiros e internacionais a partir das produções da editora independente.
A seguir, uma “mostra grátis” de B869.1 k96.
I
De frente para o leste, percebo
apenas o silêncio da brisa oceânica
e esta luz que dá sombras ao olhar.
[Ruídos roídos
rumor de humores
gritos de ritos
me despertam, chamam, invocam!].
Mas tenho medo de dar as costas para este mar e este sol.
Tenho medo de volver o corpo
e encarar este horizonte em desalinho.
Nada sei de picos e aclives
de súbitas subidas
trilhas entrincheiradas
entre escarpas e fissuras rochosas.
[A verticalidade da existência me espanta!]
O sol ao meio-dia nos iguala
: humanos, animais, vegetais, minerais
Substância somos da mesma natureza
do mesmo íntimo e único espaço.
[Ruídos e rumores!].
Mas não há mais como ignorar
: os semelhantes se convocam
a confraria se aglutina
buscam o mesmo ar rarefeito.
Giro o olhar ao norte
numa distração dissimulada.
As narinas distinguem os odores da floresta
que se insinuam
na maresia da brisa marinha.
XXXVI
Ninguém é o corpo que veste
nem as vestes que vestem o corpo:
vestais ou vendavais ou vespas.
Ninguém é o espaço que ocupa o corpo
nem a culpa
nem a cúpula
que oculta a cópula.
Ninguém é um tal alguém
ou algo do nada além
ou algoz danado, albatroz atroz.
Quem é quem
neste corpo que não nos pertence?
E que, no entanto,
nos detém, retém,
nos mantém reféns iludidos
nesta ilha molecular e ocular
paraíso de crepúsculos opacos
corpúsculos para isso fados
filosofados diante de Vésper.
Ninguém é o corpo que veste.
Investe e despe-te
da angústia de ser.