Segunda, 13 Mai 2024

Há 40 anos, uma banda e um disco incendiavam o mundo

Há 40 anos, uma banda e um disco incendiavam o mundo

Parece bizarro, mas a história de Catch a Fire começa com um filme na Suécia. Estamos em finais de 1970 e o empresário Danny Sims propõe a Bob Marley uma colaboração com o cantor Johnny Nash para compor a trilha sonora de Want So Much To Believe, o tal filme. Os três reuniam-se em torno da JAD, gravadora de Sims, Nash e do produtor Arthur Jenkins, com a qual Bob firmara contrato dois anos antes.

 
Bob topou na hora. Se mandou para a Suécia, onde o filme era rodado, e depois, em 71, estabeleceu-se em Londres, onde seu trabalho era  razoavelmente conhecido. Em vão. Nenhuma de suas músicas para a trilha se materializou. 
 
Para Sims, contudo, a coisa não era de todo ruim. Empresário de Bob à época, vislumbrava uma turnê dos Wailers pelo velho continente, atiçando talvez a cobiça de algum selo importante. Queria aproveitar de algum modo a temporada europeia de Bob. Assim convenceu os demais “wailers” - Peter Tosh, Bunny Wailer e os irmãos Barret (Aston e Carlton) - a deixar a Jamaica.
 


De novo, nada. Em verdade, quase nada. A turnê também não se materializou; limitou-se a alguns shows aqui e ali, em escolas secundárias pela região central da Inglaterra e boates londrinas. De resto, passavam os dias ensaiando para manter a forma. O grupo ainda participou do disco de Nash, I Can See Clearly Now (1972), que continha três composições de Bob: Guava Jelly, Comma Comma e, sim, a própria, Stir It Up.
 
Claro, tudo podia piorar - por que não? Um dia descobrem que Nash e Sims estavam em Miami tocando novos projetos. Aos Wailers nada restou, senão a falta de grana, de perspectiva... e o frio londrino. Um promotor chamado Brent Clark, que divulgou um fracassado compacto de Bob lançado na Inglaterra pouco antes, salvou a lavoura. 
 
É Clark quem introduz o fundamental Chris Blackwell na história. O mítico produtor dono da mítica Island Records conhecia o nome de Bob Marley e ouviu comentários favoráveis de Clark ao grupo. 
 
Anglo-jamaicano de sangue azul, Blackwell estabelecera seu selo Blue Montain/Island na Inglaterra em 1962 e por lá lançou inúmeras matrizes compradas em Kingston. Jimmi Cliff, Derrick Morgan, os Skatalites e Bob Marley estavam entre os primeiros artistas lançados.
 
E os Wailers conseguiram um adiantamento para trabalhar num álbum próprio. Ah, conseguiram também dinheiro para voltar para a Jamaica.
 
A maior bilheteria de 1964 em Kingston deu-se na manhã do dia 25 de dezembro no teatro Ward. Era um show dos Wailers, formado então por Bob, Bunny e Peter. Meses antes, em fevereiro, Simmer Down, primeiro compacto do grupo, lançado em fins do ano anterior, chegava ao topo das paradas na Jamaica. 
 
Com dois discos e inúmeros compactos lançados, os Wailers não eram exatamente desconhecidos na Jamaica ou mesmo em segmentos da Inglaterra ou dos Estados Unidos onde suas músicas conseguiam chegar. Mas espalhar pelo mundo o canto quase religioso sobre o desmazelo, o desamparo e a resistência dos “sofredores” era outra história. 
 
De volta à Jamaica, a banda mergulhou no estúdio Dynamic e labutou fervorosamente para entregar um disco à gravadora ainda no final de 1971. Foi um longo caminho entre 1964 e os primeiros dias de 1972, quando Bob Marley chegou à Inglaterra com as fitas masters de Catch a Fire em mãos para entregar à Island Records. Em 13 de abril de 73 o disco foi lançado.
 


Pulseirinhas do reggae não enfeitam tornozelos por aí à toa. Uma estrutura precisa e econômica, levada num balanço moroso, chapado, envolvente, envolta numa atmosfera doce e inebriante - não importando se leve ou carregada - assinala a emergência de Bob Marley e do reggae em escala global. 
 
No início dos anos 70, um projeto de urbanização desfigurou os arredores de Greenwich Park Road, na Jamaica, local pontilhado de cortiços populosos. Áreas inteiras desapareceram e no lugar edificou-se aquilo que ficaria conhecido como “Concrete Jungle”: modernos e cinzentos blocos de moradia urbana. Bob escreveu sobre isso num caderno para uso futuro.
 
Assim nasce o lirismo duro de Concrete Jungle, um desabafo feito de desencanto e resignação que abre o disco. Aqui progresso é uma coisa, vida é outra. A diferença entre ambas é dramática.
 
O título da música concilia noções antitéticas: selva igual barbárie, pedra igual civilização. Mas quem fez o trabalho não foi Bob propriamente; foi antes a realidade jamaicana. 
 
Catch a Fire revela pelo menos uma característica de Bob Marley que se estenderá até Uprising (1980), seu derradeiro álbum: a mesma intensidade para falar de política e de amor, de injustiça e de afeto. 
 
O mesmo álbum que contém Concrete Jungle, Slave Driver e 400 Years (as duas últimas igualando passado e presente em opressão, a primeira evocando o inferno de Jah - Catch Jah’s Fire), contém Baby We've Got A Date (Rock It Baby) e Stir It Up.
 
Por outro lado, dois atributos permaneceriam em Burnin’ mas depois iriam desaparecer (talvez muito porque Tosh e Bunny deixaram o grupo após esse disco). Um: backing vocals majoritariamente masculinos, apesar da participação de Rita Marley e Marcia Griffiths em Catch a Fire (elas aparecem mais destacadamente em Baby We've Got A Date e No More Trouble). 
 
Com Judy Mowatt, Rita e Marcia formariam as futuras I-Threes, o backing vocal feminino de Bob Marley a partir de Natty Dread (1974), primeiro álbum sem Tosh e Bunny. A carreira solo de Tosh debutaria impecavelmente três anos depois de Catch a Fire com o vibrante Legalize It
 
Dois: Bob divide o disco com a garganta poderosa de Peter Tosh, que canta a sombria 400 Years e a um tanto mais arejada Stop That Train
 

                                      
 
Além dos Wailers, outros e conhecidos músicos meteram a colher na cozinha musical de Catch a Fire. É do guitarrista Wayne Perkins os solos de Concrete Jungle e Baby We've Got A Date. O tecladista Rabbit Bundrick opera sintetizadores ou cravos nas noves faixas. O baixo de Concrete Jungle é de Robbie Shakespeare. Os órgãos de Concrete Jungle e Stir It Up são de Winston Wright. 
 
Edições posteriores trouxeram ainda duas belas canções-bônus: High Tide or Low Tide e All Day and All Night
 
Sly and the Family Stone eram as estrelas máximas do show realizado numa noite de outubro de 73 em Las Vegas. Os Wailers também tocaram - o ano vinha sendo de turnê por Inglaterra e Estados Unidos para divulgar Catch a Fire. Abriram para a Atlee Yeager Band e ambas aqueceram o público para a apoteose de Sly e cia. Assim esperava-se.
 
Mas a empolgação foi demasiada para um mero show de abertura. Sly não só não gostou, como vetou os Wailers do restante da turnê. 
 
Dois meses depois, mais fogo seria ateado. Bob Marley e os Wailers varreram o mundo com outra labareda: Burnin’, outra obra máxima, não menos comovente, não menos raivosa. Mas isso é papo para dezembro.

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