Quinta, 18 Abril 2024

Matilde Campilho antes do Brasil

matilde_campilho_divulgacao Divulgação

Jóquei tem um ar sui generis, é um livro de poemas que não estava no radar da crítica literária, nem no mercado, mas que deu super certo, e foi um livro muito bem acolhido por crítica e público. Matilde Campilho se saiu bem e logo ganhou seu espaço, o meio literário português e brasileiro entendeu os códigos desta poesia de Matilde.

Gustavo Rubim, crítico de poesia do Ípsilon, chamou-lhe de "um acontecimento precioso em língua portuguesa" e disse que Matilde era uma voz poética como um "vento de pura selvajaria". Dos diversos elogios à obra Jóquei, está um leitmotiv deste híbrido ligando Portugal e Brasil, é o que eu chamei no texto anterior de clichê-Matilde.

A poesia de Matilde Campilho está livre do tom austero, grave, e também de toda a pomposidade, e tem no inglês uma bem-vinda influência de Eliot e Whitman. Citando de novo o texto de Rubim, há "verso curto, prosa longa, diálogo, narrativa, quase aforismo, espécie de carta, glosa".

Em Jóquei os poemas dançam, pode-se usar expressões mais sisudas como ética poética, por exemplo, uma vez que, em parte, está mais ligado a um modo de falar, um linguajar, do que a uma relação de significados que as palavras de seus poemas comportam. No livro Jóquei temos múltiplas vozes, numa dicção que ganha pluralidade, ecoa muita coisa nestes poemas.

Antes do Brasil (uma vez que a história da poeta tem um antes e um depois do Brasil), Matilde estudou Línguas e Literaturas Modernas, variante Estudos Portugueses e Ingleses, sendo que, curiosamente, a sua "fase de não ler foi na universidade". Depois tirou um minor em História da Arte, em Milão, mesmo que tenha ficado mais tempo em Florença, e viveu dois anos em Madrid, e no Brasil fez novamente o trabalho de editora de texto para um canal de televisão. E foi no Brasil que Matilde "soltou a língua" que, segundo a própria "estava travada".

POEMAS

GOLPE DE 7 GRAUS: O poema se abre em uma peculiar astrolírica, no que vem : "Depois de Manuel de Castro, que disse/Venho dum país de neve e floresta/Há aquele poema que fala de renas/e do filho gigantesco/que nos atravessa as cabeças geladas/Fala de uma astrolírica saudade/que levantava a nave até ao nome/Mas olha esse nome nem é meu/porque ao meu nome lhe falta uma letra/É um poema mais ou menos de exílio". O poema que Matilde diz ser de exílio, também desfaz velhas noções sobre o amor, e segue : "O amor desenhado à luz das flores velhas/não me interessa mais". Em sua casa, a poeta tenta ver algo, e lembra da cidade em que já morou, no que segue : "Uma porta entreaberta/não deixa ver o real/Esta manhã não sei se existiriam os melros/depenicando a relva do vizinho/Não sei se vieram as ruas/da cidade onde já morei". O poema segue em sua visão : "Passeava na avenida onde uma vez/um colibri se embrenhou em minha testa/na época pensei que era o sinal do amor/Fui a ver e não era sinal de nada/era só a simpatia do passarinho". Matilde descreve então a sua visão durante o sono, em que ela elenca toda uma teia de acontecimentos que viram aqui poesia, no que temos : "Hoje durante o sono/eu passeava na cidade/onde o filho até já pariu irmãos/onde Carlos me ofereceu três papéis de Zbigniew/onde o cachorro andava meio adoentado/e onde precisei fazer de spiderman/para fugir ao feitiço da umbanda". Matilde segue : "eu me perdi nas sete estradas/ao volante de um opel vectra/Mas rapidamente me achei/porque casa da gente a gente acha/Depois acordei/para o poema". Ela se encontra, e nesta aventura, acorda para o poema, no que segue : "Acordei para o som do rádio/que não tocava triste nem fútil/não falava da morte nem dos carretos/Que só acertava os pontos/com o planeta/repetindo aquela frase/que sempre vem exatamente antes/da frase que diz/It`s lonely out in space./Saudade, astrolírica saudade/Teu nome perdeu o agá.". Sua coda retoma a astrolírica, e a palavra saudade ganha corpo aqui encerrando o poema, a última ideia que revela então esta coda já com mais uma prática do inglês pela poeta que gosta de brincar em seu linguajar esperto.

VENDAVAL: O poema descreve um menino prodígio português num tom de humor poético próprio de Matilde, enquanto ela descreve a si como personagem também deste seu poema, junto com um amor seu, e o bar do Doug, aonde se ambienta toda a descrição peculiar deste poema bem interessante, no que temos : "O rapaz prodígio venceu/o prêmio de ouro/É Portugal brilhando/na grama internacional" (...) "Veja bem não é por nada/Absolutamente nada contra/nosso menino dourado" (...) "Mas repare/Tomei umas quantas cervejas/no bar do hotel do Doug/faz uma semana agora/Era dia de reis/e troquei mirras & beijos/com meu velho costumeiro/amor de aço/Sabe aquele amor/que permanece nos dias/Se espalha nos areais/sem tempo nem nome" (...) "Aquele que sempre vai/e que sempre vem". Matilde segue esta sua descrição riquíssima, o menino prodígio de Portugal, seu prêmio de menino de ouro, e a vida própria da poeta neste poema louco, no que segue : "Hércules visitou nossa costa/E ao invés de vestir o escafandro/meu velho amor e eu/escolhemos ver a revolução aquática/a partir da bancada do bar". Ela segue, e se diz mais vivida que o tal prodígio, ela descreve a visita de Hércules, e diz que se abrem fendas na cidade, no que segue : "Foi tudo muito maravilhoso/visto da bancada/Sempre é/desde 1982" (...) "aquele velho amor e eu/Temos uns quantos anos mais/do que o rapaz prodígio/Não saímos nunca no noticiário" (...) "Hércules ainda vem para nos visitar/a cada quatro ou cinco tempos/E sim ainda/se abrem fendas na cidade". O poema segue, e Matilde descreve esta sua visão da proa que também enxerga um destino, no que temos : "Meu amor e eu/nós fazemos história/no mapa do casco de Noé" (...) "Sim amor os dias se fazem/por placas de resignação/Dois meninos acenando/para o fiel capitão/que chora na proa/do cargueiro da vida/e do destino". O menino de ouro vence o prêmio de ouro, no que segue : "deu nas notícias/o rapaz de ouro venceu/o prêmio de ouro". Vemos aqui a última estrofe, o poema diz sobre Portugal, o tal menino de ouro, e a explosão de amor, uma coda brilha no olho da poeta, todo preto e verde, no que temos : "Portugal meu querido/país dos descobridores/aposentados/Tenha orgulho de seu menino/Mas saiba igualmente que você/também foi/para sempre será/o berço e o caixão/para o mais sério caso/de explosão de amor/que o mundo já viu./E é por causa disso/o brilho de meu olho/todo preto e verde.".

BRIGA ENTRE UM TERRENO SAGRADO E OUTRO: O poema segue com um interlocutor, um método bem usado por Matilde, e muito presente nos poemas do seu livro Jóquei, e aqui temos mais um poema que tem este modo de se colocar, a dicção de Matilde, que volta e meia convoca um interlocutor, seja este amoroso ou outra coisa, no que temos : "Perdi muito tempo pensando/sobre se você iria para o céu/ou para o inferno/Achava que com tanta gente/ferida por seu punhal/havia uma possibilidade/Sim uma possibilidade/de que você fosse parar/no inferno". Matilde então descreve esta sua figura neste seu poema curioso, no que segue : "Tinha a forma como você/conversava com estranhos/na rua à hora dos lobos" (...) "Aquela sua atrapalhação/quando você se atrasava/Você sempre se atrasava/e chegava correndo/se justificando/olhando o relógio/que você nem tinha/Você toda afogueada/subindo no banco de trás/de minha bicicleta/enquanto eu continuava/lendo o jornal internacional". Novamente, Matilde evoca o destino metafísico deste seu interlocutor, e temos : "Havia a possibilidade/e havia uma forte possibilidade/de que você terminasse no céu/ou no paraíso/O tempo que você levava/para se despertar/nas manhãs de dezembro/A atenção que você dedicava/a todas as partes de seu corpo/e de meu corpo". O poema de Matilde e esta influência do interlocutor, que flerta aqui com o inferno e o crime, no que temos : "Passei muito tempo pensando/sobre se tua inclinação/te levaria até o inferno/pouco depois de tua morte/E mais do que isso/eu também pensava/se você morrer eu morro/se você escolher o gole do diabo/eu bebo do mesmo cantil/Foi assim que me tornei ladrão". E Matilde segue : "Foi assim que esbofeteei o policial/e pior que isso foi assim que esmurrei/meu colega samurai". E a coda inteligente, com a relação desta morte do interlocutor, que faz Matilde dar de caras com a vida, eis a coda em uma luz bem intensa de final inteligente de poema, com um estro que responde com este humor de Matilde toda a sua maneira de fazer um poema, no que temos : "Para onde você vai eu não sei/Na verdade não me importa mais/Porque no caminho do post-mortem/Aconteceu que dei de caras com a vida.".

POEMAS 

GOLPE DE 7 GRAUS

Depois de Manuel de Castro, que disse

Venho dum país de neve e floresta

Há aquele poema que fala de renas

e do filho gigantesco

que nos atravessa as cabeças geladas

Fala de uma astrolírica saudade

que levantava a nave até ao nome

Mas olha esse nome nem é meu

porque ao meu nome lhe falta uma letra

É um poema mais ou menos de exílio

mais ou menos não

Não sei se fala do amor por alguém

e isso não me importa nem um pouco

O amor desenhado à luz das flores velhas

não me interessa mais

Não agora, não depois disto

Esta manhã a persiana do meu quarto

partiu ao meio

não deu para ver o mar da varanda

Uma porta entreaberta

não deixa ver o real

Esta manhã não sei se existiriam os melros

depenicando a relva do vizinho

Não sei se vieram as ruas

da cidade onde já morei

Sim as ruas estiveram neste quarto

isso é mais que certo

Mas eu não sei se vieram antes

ou depois do princípio da manhã

Hoje durante o sono

eu passeava na cidade sem renas

Passeava na avenida onde uma vez

um colibri se embrenhou em minha testa

na época pensei que era o sinal do amor

Fui a ver e não era sinal de nada

era só a simpatia do passarinho

e isso foi mais que suficiente

Hoje durante o sono

eu passeava na cidade

onde o filho até já pariu irmãos

onde Carlos me ofereceu três papéis de Zbigniew

onde o cachorro andava meio adoentado

e onde precisei fazer de spiderman

para fugir ao feitiço da umbanda

Hoje durante o sono

eu me perdi nas sete estradas

ao volante de um opel vectra

Mas rapidamente me achei

porque casa da gente a gente acha

Depois acordei

para o poema

Para o urro doloroso

da palavra Fidelidade

Para o contorno trêmulo

da letra que me falta

Para o país do azevinho

e da excitação coletiva

costurada a verde e a vermelho

Para o tom neutro do cansaço

que acontece principalmente aos domingos

quando a rena ainda não se transformou em cervo

Quando o bicho ainda não veio

comer das folhas de minhas mãos

Nem soprar seu bafo quente

para formar as folhas

que devem crescer-me nos pulmões

Acordei para o som do rádio

que não tocava triste nem fútil

não falava da morte nem dos carretos

Que só acertava os pontos

com o planeta

repetindo aquela frase

que sempre vem exatamente antes

da frase que diz

It`s lonely out in space.

Saudade, astrolírica saudade

Teu nome perdeu o agá.



VENDAVAL

O rapaz prodígio venceu

o prêmio de ouro

É Portugal brilhando

na grama internacional

e brilhando tão pouco

em meu olho preto

Veja bem não é por nada

Absolutamente nada contra

nosso menino dourado

Ele que já era de ouro

mesmo antes da loucura

do Zé Bexiga

Mas repare

Tomei umas quantas cervejas

no bar do hotel do Doug

faz uma semana agora

Era dia de reis

e troquei mirras & beijos

com meu velho costumeiro

amor de aço

Sabe aquele amor

que permanece nos dias

Se espalha nos areais

sem tempo nem nome

Se enterra vezinquando

nas barbas de um estrangeiro

e depois volta

no cangote de um peixe prata

Aquele que sempre vai

e que sempre vem

feito o trem de Minas

Quase ninguém viu Maria

Fumaça

mas todo mundo sabe que existe

Li um poema que falava de

"my little space cadet"

É mais ou menos isso

My little space cadet

veio comigo ao bar do Doug

e juntos enfrentamos

as ondas de 22 metros

Sim foi na noite da tempestade

Faça suas contas

está fazendo uma semana agora

Hércules visitou nossa costa

E ao invés de vestir o escafandro

meu velho amor e eu

escolhemos ver a revolução aquática

a partir da bancada do bar

Nos estamos quedando mayores

mi viejito amor y yo

já não temos estofo

pra ver as ondas do pontão

Vai que entra uma pedra

de sal no olho

Vai que surge a verdade

de Netuno

na cara dos vagalhões

e na cara de nosso friso

Foi tudo muito maravilhoso

visto da bancada

Sempre é

desde 1982

Somos bastante da mesma idade

e do mesmo time

aquele velho amor e eu

Temos uns quantos anos mais

do que o rapaz prodígio

Não saímos nunca no noticiário

O país não vestiu de todo

nossa camisa vermelha e verde

Quase ninguém brindou a nossa vitória

Mas nós sim

O Doug sim

O Doug ainda nos trata

por menino e menina

apesar de nossos 30 e tal anos

Hércules ainda vem para nos visitar

a cada quatro ou cinco tempos

E sim ainda

se abrem fendas na cidade

por cada vez que escolhemos

embater nossas testas

nossos corações

nossos cílios

nossa tenebrosa loucura

Meu amor e eu

nós fazemos história

no mapa do casco de Noé

"All men are Noah's sons"

a gente sempre confirma isso

Faz uma semana agora

e dessa vez não foi diferente

Para variar a dialética é bom

falar que dessa vez não foi diferente

e assumir nosso velho trem

Dois meninos no bar

Dois meninos medindo

a distância daqui para Sírius

Dois meninos aceitando

a benção horária

que constrói os dias

Sim amor os dias se fazem

por placas de resignação

Dois meninos acenando

para o fiel capitão

que chora na proa

do cargueiro da vida

e do destino

É pois é

deu nas notícias

o rapaz de ouro venceu

o prêmio de ouro

Oito dias depois da morte

do outro futebolista português

Portugal entrou em pausa

para se orgulhar de seus heróis

E nós dois paramos

junto ao balcão do bar de Doug

para aplaudir o amor eterno

numa resignação tão pacífica

mas tão pacífica

que só pode encher o país

de brilho e de sossego.



Portugal meu querido

país dos descobridores

aposentados

Tenha orgulho de seu menino

Mas saiba igualmente que você

também foi

para sempre será

o berço e o caixão

para o mais sério caso

de explosão de amor

que o mundo já viu.



E é por causa disso

o brilho de meu olho

todo preto e verde.


BRIGA ENTRE UM TERRENO SAGRADO E OUTRO

Perdi muito tempo pensando

sobre se você iria para o céu

ou para o inferno

Achava que com tanta gente

ferida por seu punhal

havia uma possibilidade

Sim uma possibilidade

de que você fosse parar

no inferno

Mas depois também tinha

aquela coisa de você nadando

na Praia da Amoreira

ou de você desenhando

com uma pedrinha branca

na pele do rochedo irregular

ou até de você aparecendo

sorrindo na minha frente

Tinha a forma como você

conversava com estranhos

na rua à hora dos lobos

Seu jeito de segurar a raquete

quando jogava badminton

Aquela sua atrapalhação

quando você se atrasava

Você sempre se atrasava

e chegava correndo

se justificando

olhando o relógio

que você nem tinha

Você toda afogueada

subindo no banco de trás

de minha bicicleta

enquanto eu continuava

lendo o jornal internacional

calmamente

sempre calmamente

te esperando

Você dizia des-des-desculpa

eu lia a última parte da notícia

que falava de um barco

encalhado na Mesoamérica

e depois te dizia vamos?

Havia a possibilidade

é havia uma forte possibilidade

de que você terminasse no céu

ou no paraíso

O tempo que você levava

para se despertar

nas manhãs de dezembro

A atenção que você dedicava

a todas as partes de seu corpo

e de meu corpo

e do corpo do raminho

de peônias

que adormeciam

e acordavam conosco

no hotel mais sujo da cidade

em dezembro e fevereiro

Isso dizia muito sobre

sua vocação para a meditação

e também para o desespero

Passei muito tempo pensando

sobre se tua inclinação

te levaria até o inferno

pouco depois de tua morte

E mais do que isso

eu também pensava

se você morrer eu morro

se você escolher o gole do diabo

eu bebo do mesmo cantil

Foi assim que me tornei ladrão

Assim que apontei o canivete

na têmpora de Xavier Tementree

Assim que assaltei a horta biológica

para levar todos os pés da salsa dourada

Foi assim que esbofeteei o policial

e pior que isso foi assim que esmurrei

meu colega samurai

quando eu sabia que ele fazia aquilo

só por diversão ou por imitação

Passei muito tempo pensando

num lado e no outro

E portanto nos intervalos do terror

para cobrir minha retaguarda

Eu dançava na quermesse

Alimentava os castores

Contava as línguas das tribos

Fazia vênias aos astrofísicos

Beijava todas as cabeças

dos pássaros e dos lampiões

Não fosse deus tecer a manta

e fazer-te escolher a água benta.



Para onde você vai eu não sei

Na verdade não me importa mais

Porque no caminho do post-mortem

Aconteceu que dei de caras com a vida.


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog:
http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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