Poeta polonesa, que ganhou o Nobel, deixa evidente a importância de dizer “não sei”
Esta poeta polonesa, que ganhou o Nobel de literatura em 1996, se tornou familiar ao leitor brasileiro de poesia e de literatura, pois este livro repercutiu tanto entre estes leitores como na imprensa, e o resultado imediato foi aparecer mais uma tradução dela, agora com o título de Um Amor Feliz, coletânea que reúne 85 poemas, a partir de uma seleção de livros publicados, originalmente, a partir de 1957 até o ano de morte de Szymborska, em 2012.
Este livro Um Amor Feliz tem a predominância de poemas da fase inicial da obra de Wislawa Szymborska, dos livros de 1957, Chamando Por Yeti, de 1962, Sal, e de 1967, Muito Divertido, além da fase final, abarcando os poemas publicados já no século XXI, incluindo a obra póstuma Wystarczy (Chega), lançado em 2012.
A distribuição dos poemas é cronológica, dando uma ideia dos temas que a poeta abordou durante meio século de atividade literária. A lista de interesses da poeta podia ir, por sua vez, das ciências e da filosofia, passando por questões históricas da Antiguidade e do mundo contemporâneo, a vida cotidiana, donde se retirava sempre algo inaudito, e também se ligando a temas do micro e do macrocosmo. A linguagem de seus poemas também possuía um humor e uma leveza.
As tragédias do século XX, embora fossem temas sérios e tratados como tal, tinham também a fina ironia da poeta como fundo crítico. A vida em sua fragilidade e seu caráter efêmero apareciam com riqueza em seus poemas, o silêncio indiferente do universo, ensimesmado em seu enigma, a incomunicabilidade entre as pessoas, dentre outros temas.
Também se pode ver em sua poesia a condução de um olhar que não domina o saber em seu todo, mas que tem como valor a curiosidade de quem descobre a indagação fundamental, desestabilizando certezas arraigadas, pré-concepções de mundo, cosmovisões engessadas, e tudo o que impede o movimento do mundo, e isso através de perguntas fundantes e insólitas, o que também dá corpo a seus poemas filosóficos. É em seu discurso do Nobel que a poeta deixa evidente a importância de dizer “não sei” para fazer os seus poemas, pois isto abre novos modos de ser e de ver.
A poesia de Wislawa Szymborska, mesmo acessando profundidades através de questionamentos insólitos e inauditos, mantém a sua proximidade com o leitor, pois não vira um hieróglifo indecifrável ou algo de uma filosofia de fundamentação abstrusa. Ou seja, a poeta consegue salvaguardar a clareza de suas ideias, mesmo no enfrentamento contra certezas e aparências que tendem a simplificar o mundo de modo equívoco.
Os poemas de Szymborska começam de modo provocativo, partindo de perguntas aparentemente banais, ou observações e afirmações prosaicas, mas que logo avança para algo inaudito, imprevisível, mas que conclui tudo de modo claro e lógico. A proximidade destes poemas com o leitor comum, sem afetações enigmáticas ou abstrusas, caracterizam os poemas de Szymborska como distantes de qualquer lirismo elevado.
Em uma entrevista de 1975, a poeta conclui: “Parece-me que esses críticos que acham que eu às vezes escrevo como que novelinhas em miniatura, que são na verdade pequeninas histórias com alguma ação – talvez tenham razão”.
Poemas
Livro: Chamando Por Yeti
Noite: O poema deste livro de 1957, início da atividade literária da poeta, já nasce com o tema bíblico extremo do sacrifício de Isaac para Jeová, mas que é suspenso em cima da hora como prova de fé, por parte de Abraão, no que temos : “Mas o que foi que o Isaac fez?/seu padre me diga.” (…) “Os adultos que durmam/um sono tolo assim,/esta noite/eu preciso vigiar até a aurora./A noite se cala,/mas se cala contra mim,/escura/como o fervor de Abraão”. A poeta encara a noite, tal como se esta se desse para ela com o mesmo fervor de Abraão, no que segue : “Onde vou me esconder,/quando em mim pousar/o olhar bíblico de Deus/como pousou em Isaac?/Antigos feitos se quiser/Deus pode ressuscitar./Por isso gelada de medo/cubro a cabeça com o cobertor.” (…) “Algo logo vai/embranquecer diante da janela,/encher o quarto com o zumbido/de um pássaro ou do vento.”. O temor mortal da poeta está presente no poema, como se fosse Isaac partindo ao sacrifício, no que segue : “Deus vai fingir/que voou para dentro por acaso,/que não era para estar realmente ali,/e depois vai levar meu pai/para a cozinha confabular sobre o caso/e com uma grande trombeta lhe soprar ao ouvido.” (…) “E quando amanhã bem cedo/meu pai pela estrada me levar,/vou, vou/enegrecida de ódio./Em nenhum amor, nenhuma bondade,/vou acreditar,/mais indefesa/do que as folhas de novembro.” (…) “Nem amar,/carregar um coração vivo no peito./Quando acontecer o que tem que acontecer,/quando acontecer,/vai me bater um fungo seco/em vez do coração.”. Parece que existe um destino inevitável, tal como o de Isaac, mesmo com este suposto Deus tendo entrado como um vento do acaso por ali, na presença da poeta e de seu pai, a grande trombeta parece soar ao ouvido da poeta, e isto a congela de medo da morte, no que segue : “Deus espera/e da sacada das nuvens espia/para ver se alta e bela/queima a fogueira/e verá como/se morre de teimosia,/porque vou morrer,/não vou deixar que me salve!” (…) “Desde aquela noite/além dos limites de um sono malsão,/desde aquela noite/além dos limites da solidão,/Deus começou/pouco a pouco/devagarinho/a mudança/do literal/para o metafórico.” Foi assim, que da noite e de seu temor, a metáfora nasceu da poeta, a indagação que vem do espanto, com a sua poesia que não se sabe se é destino ou tampouco acaso, apenas existe.
Ainda: A poeta fala aqui do holocausto, e retrata o transporte dos judeus nos trens para os campos de concentração e de extermínio do nazismo, no que temos : “Vão pelo país em vagões selados/os nomes transportados,/mas para onde vão assim,/será que a viagem terá fim,/não sei, não direi,/não perguntem.” As pessoas que são transportadas, todas, sem exceção, estão com medo de morrer, incertas quanto ao futuro, e Szymborska cita alguns de seus nomes, no que vem : “O nome Natan esmurra a parede,/o nome Isaac canta louco de fome,/o nome Sara pede água para o nome/Aarão, que morre de sede.” A poeta prevê que alguns destes condenados pelo regime nazista sobreviverão, e pede que tenham resiliência, que não desistam de viver, pois Davi, por exemplo, que pensa em se jogar do trem, ainda terá um filho no futuro, no que temos : “Não pule do trem, nome Davi./Você é um nome que ao fracasso condena,” (…) “Que teu filho tenha um nome eslavo,/porque aqui cada fio de cabelo é contado,/porque aqui o bom do mau/pelo nome e feição é separado.” Este lugar do extermínio, em que cada gesto é vigiado, toda gente registrada, em que características físicas e pretensamente raciais separam o bom do mau, em que o próprio maligno julga como maligna e amaldiçoada toda raça que não lhe seja espelho, num plano de solução final, não sabe que de sua tragédia ainda resta a esperança de um outro dia, quando isso tudo passar, no que temos : “Não pule do trem. Ainda não é hora./Não pule do trem. Será Lech o teu filho./Não pule. A noite como uma risada sonora/arremeda o rolar das rodas no trilho.” (…) “Uma nuvem de gente sobre o país seguiu,/ nuvem grande,/chuva pouca,/uma lágrima caiu,/chuva pouca,/uma lágrima/secura./Os trilhos dão em uma floresta escura.” (…) “Sim, é assim, segue pelos trilhos o trem./Sim, é assim. O transporte dos gritos de ninguém./Sim, é assim./Desperta na noite escuto/sim, é assim, o surdo martelar do silêncio.” O poema se conclui na obscuridade destes trens, com seu trajeto, seus trilhos e a floresta escura, os gritos de ninguém, em meio aos nomes que a poeta citou no mesmo poema.
De uma expedição não realizada ao Himalaia: A poeta aqui narra o trajeto feito por montanhistas no Himalaia, num poema que descreve imagens e sensações, no que temos : “Ah, então este é o Himalaia./Montanhas correndo para a lua./O instante da largada fixado/no rasgar súbito do céu./Deserto de nuvens perfurado./Um golpe no nada./Eco – mudo branco./Silêncio.” A poeta também traça o contraste entre a paisagem insólita do alto da montanha com o cotidiano que acontece no Yeti, ao pé do Himalaia, no que vem : “Yeti, lá embaixo é quarta-feira,/tem abecedário, pão/e dois e dois são quatro/e a neve derrete./Tem rosa amarela,/tão formosa, tão bela.” Cabem aqui palavras de esperança da poeta, diante da contemplação da natureza, no que vem : “Yeti, não só crimes/acontecem entre nós./Yeti, nem todas as palavras/condenam à morte.” O mundo não herdará a morte, ainda temos esperança, no que segue : “Herdamos a esperança -/o dom de esquecer./Você vai ver como damos/à luz em meio a ruínas.” (…) “Yeti, temos Shakespeare lá./Yeti, e violinos para tocar.” (…) “Aqui – nem lua nem terra/e a lágrima congela./Ó Yeti meio lunar,/pense, volte!” (…) “Entre as quatro paredes da avalanche/assim eu chamava pelo Yeti/batendo os pés para me aquecer/na neve”. Diante da avalanche, na iminência da tragédia, a poeta assim chamava pelo Yeti, cantando a esperança, dando à luz em meio às ruínas, em que a cultura shakespeariana se misturava à neve indiferente na qual a lágrima congela.
Sonho de uma noite de verão : Como numa peça shakespeariana, a das poções de amores ilusórios e efêmeros, como uma Titania, aqui se insinua a poeta Szymborska, no que temos : “Já se acende o bosque de Ardenas./Não se aproxime de mim./Tola, tola,/me meti com o mundo.” Ela alerta sobre o que pode representar um perigo, mas nada mais que o perigo natural do amor, que se enfrenta e do qual se usufrui, mesmo assim, no que vem : “Por isso cuidado comigo. Vá-se embora.” (…) “Vá-se embora, vá-se embora, mas não por terra./Navegue, navegue, mas não por mar./Voe, voe, meu caro, mas não toque o ar.” (…) “Fitemo-nos de olhos fechados./Falemo-nos com os lábios cerrados./Abracemo-nos através de um largo muro.” (…) “Dupla pouco divertida esta :/em vez da lua, brilha a floresta/e um forte vento, ó Píramo, inflama/o manto radiativo de tua dama.” A interação da natureza e do amor aqui revela dons de poesia e do teatro, o que pode se traduzir como fantasia. A poeta descreve o flerte em meio à radiação que isto envolve.
Livro: Sal
Um instante em Troia: A poeta agora se volta à mitologia grega, mais especificamente na Ilíada, e descreve as suas chamadas Helenas, no que temos : “Menininhas,/magras e descrentes,” (…) “parecidas com o papai ou a mamãe,/e sinceramente assustadas com isso,” (…) “diante do prato, diante do livro, da frente do espelho/sucede serem raptadas para Troia.” (…) “Nos grandes vestiários de um pestanejar/se transformam em formosas Helenas.” O poema segue descrevendo a beleza, e o que esta provoca, entre os que tombam por estas Helenas, no que segue : “Ascendem as escadas reais/num sussurro de assombro e de sedas.” (…) “Sentem-se leves. Sabem que/a beleza é um descanso,/que a fala assume o sentido dos lábios” (…) “Seus rostinhos/que valem a demissão dos emissários/se projetam com orgulho de colos/dignos de um cerco.” (…) “Os morenos dos filmes,/os irmãos das colegas,/o professor de desenho,/ah, todos tombarão por elas.” E estas belezas inebriantes se fiam num cenário de hipocrisia, no que segue : “As menininhas/torcem as mãos/num rito inebriante de hipocrisia.” Em meio a uma Troia em chamas, a tragédia se abre em seu lamento universal, no que segue : “As menininhas/contra o fundo da devastação/no diadema da cidade em chamas/e os brincos do lamento universal nas orelhas.” (…) “Pálidas e sem uma lágrima./Saciadas da visão. Triunfais./Tristes somente/de ter que voltar.” (…) “As menininhas/voltando.” O triunfo dos helenos e de suas helenas vence com frieza, e então só resta a tristeza do retorno da viagem.
O resto: No teatro shakespeariano, aqui diante do clássico Hamlet, temos a personagem Ofélia, a irmã do príncipe que acaba se suicidando, numa peça em que a filosofia do suicídio tem seu primeiro esboço, bem antes de Camus ou Cioran, no que temos : “Ofélia acabou de cantar cantigas loucas/e saiu de cena preocupada :/será que o vestido não amarrotou, o cabelo/caiu nos seus ombros do jeito que devia?” (…) “Para cúmulo da verdade, lava o cenho do negro/desespero e – como filha de Polônio que é -/para ter certeza conta as folhas tiradas do cabelo./Ofélia, que a Dinamarca perdoe a mim e a ti :/morrerei com asas; sobreviverei com garras práticas./Non omnis moriar de amor.” A poeta, contudo, contraria o cenário niilista e sobrevive, sem morrer de amor.
Bodas de ouro: A poeta descreve como o amor conjugal pode surgir e se desenvolver, mas, claro, envolvido na metáfora poética e um olhar sui generis de descrição e compreensão, no que temos : “Devem ter sido diferentes um dia,/fogo e água, diferindo com veemência,/sequestrando e se doando/no desejo, no assalto à dessemelhança.” (…) “Um dia a resposta antecipou a pergunta./Uma noite adivinharam a expressão do olhar do outro/pelo tipo de silêncio, no escuro.” Na dessemelhança, depois do nadir da sexualidade, semelhanças aparecem mais, e a confluência se dá de um modo mais elevado, no que vem : “O sexo fenece, os segredos se consomem,/na semelhança as diferenças se encontram/como todas as cores do branco.” E a questão está em quem se conserva como é, ou quem foi engolido, como num jogo de duplos, em que se multiplica a pergunta por quem é quem e como se gêmeos surgissem da interação mais aprofundada pelo tempo, em que já não se faz distinção nenhuma, nem entre os filhos, e a pomba pousa, então, nas bodas de ouro, tudo idêntico, em que se juntaram as formas e temperamentos, por fim : “Qual deles está duplicado e qual aqui está faltando?/Qual sorri com um duplo sorriso?/A voz de quem ressoa nas duas vozes?” (…) “Quem arrancou a pele de quem?/Quem vive e quem morreu/enredado na linha – de qual mão?” (…) “Devagarinho, de tanto olhar, nascem gêmeos./A familiaridade é a mais perfeita das mães -/não faz distinção entre os seus dois filhos,/mal recorda qual é qual.” (…) “No dia das bodas de ouro, dia festivo/uma pomba vista de forma idêntica pousou na janela.”
As mulheres de Rubens: A poeta agora descreve as mulheres pintadas por Rubens, o pintor brabantino de estilo barroco, no que temos : “Herculinas, fauna feminina,/nuas como um ribombo de barris./Aninham-se em leitos pisados/dormem de boca aberta para cocoricar./Suas pupilas fugiram para o fundo/e penetram no interior das glândulas,/donde os fermentos se infiltram no sangue.” (…) “Filhas do barroco. Incha a massa na gamela,/banhos soltam vapor, vinhos enrubescem,/galopam pelo céu leitões de nuvens,/trombetas estrondeiam o alarme físico.” A pompa e o detalhe rebuscado da pintura barroca se reflete neste poema, em que a poeta faz uma imitação de tons e variações da pintura de Rubens, no que segue : “Ó aboboradas, ó desmesuradas/e duplicadas pela renúncia das vestes/e triplicadas pela violência da pose,/pratos gordurosos de amor!” (…) “Suas irmãs magras levantaram mais cedo,/antes que clareasse no quadro./E ninguém viu quando seguiram em fila/do lado não pintado da tela.” (…) “Banidas do estilo. Costelas à mostra,/pés e mãos de pássaros./Tentam voar nas espáduas salientes.” (…) “O século treze lhes daria um fundo dourado./O vinte – uma tela prateada./O dezesseis não tem nada para as retilíneas.” As mulheres magras ficam ao lado, o gosto estético da época de Rubens privilegia as formas bojudas, e a poeta descreve esta distinção de gosto que evolui e muda com a História, no que temos : “Porque até mesmo o céu é bojudo/bojudos os anjos e bojudo o deus -/um Febo bigodudo que num corcel suado/cavalga para a alcova fervente.”
Água: A poeta descreve neste poema, de forma rica e bonita, a água, e tudo o que poeticamente pode ser pensável e metaforizado em poesia, e a maleabilidade própria da água se revela aqui na forma literária, mais especificamente, poética, no que temos : “Uma gota de chuva me caiu na mão/extraída do Ganges e do Nilo,” (…) “da geada ascendida ao céu no bigodinho de uma foca,/da água dos potes quebrados nas cidades de Ys e de Tiro.” (…) “No meu dedo indicador/o mar Cáspio é um mar aberto,” (…) “e o Pacífico flui dócil para o Rudawa/o mesmo que flutuava como nuvenzinha sobre Paris” (…) “no ano setecentos e sessenta e quatro/em sete de maio às três da manhã.” (…) “Não há bocas suficientes para proferir/teus nomes fugazes, ó água.” A descrição de lugares e os nomes que a água recebe, regiões, etc, é tão rico, que o poema enfim sucumbe como num afogamento, no que segue : “Alguém se afogou, alguém que morria te chamou./Foi há muito tempo e foi ontem.” (…) “Extinguias o fogo de casas, arrastava casas/como árvores, florestas como cidades.” (…) “Estavas nas pias batismais e nas banheiras das cortesãs./Nos beijos, nas mortalhas.” (…) “Roendo pedras, alimentando arco-íris./No suor e no orvalho das pirâmides, dos lilases.” (…) “Como tudo é leve numa gota de chuva./Com que delicadeza o mundo me toca.” (…) “O que quer que, quando quer que, onde quer que/se passou, está escrito na água de babel.” Aqui temos a chuva, a água, e sua imensidade, por fim, como uma babel.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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