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O livro Discussão de Jorge Luis Borges – parte II

A DURAÇÃO DO INFERNO

Jorge Luis Borges se confronta aqui com um dogma que lhe é incômodo, e creio ser um dos argumentos mais contra-intuitivos e perturbadores tanto do dogma católico do inferno, como da ideia geral que se tem de castigo infinito. O campo especulativo aqui tem um entrave filosófico diante de uma intenção religiosa dogmática que ignora o fim e o processo como algo provisório. Quando Borges nos diz, abrindo seu texto : “Especulação que vem se tornando cansativa com o passar dos anos, essa do Inferno”. Aqui ele já acusa a ideia de inferno incessante como algo tanto enfadonho como exaustivo, isto é, se cansa de pensar sobre ou imaginá-lo, este inferno em que o castigo é perene, burlando qualquer conceito mais verossímil de justiça divina.

 
E Borges então ainda nos lembra, e isto com a ideia crítica embutida que ele logo explicará, que já havia um inferno físico, as fogueiras eclesiásticas do Santo Ofício, aqui, este sim, um tormento temporal, e que Borges logo nos diz ser “uma metáfora do imortal e da dor perfeita sem destruição que conhecerão para sempre os herdeiros da ira divina”.
 
Nem Dante, segundo Borges, segue tal entusiasmo por uma ideia tão cruel, e então o autor Borges se depara com um dogma que se desgasta, e temos então o episódio irônico, já no século XIX, de um poeta como Baudelaire, que trata tal dogma com ironia, fazendo do inferno o seu ideal, simulando uma adoração do castigo, mas que no contexto do poeta francês é somente mais um sintoma da decadência de tal dogma diante da realidade e da ideia de justiça divina, mais uma vez.
 
E Borges então nos esclarece, dizendo : “a noção de inferno não é privativa da Igreja católica (…) seja o inferno um dado da religião natural ou apenas da religião revelada, o certo é que para mim nenhum outro assunto da teologia tem igual fascinação e poder”. Borges então desfaz a ilusão do senso comum de uma ideia primária de fogo, espetos e tenazes, imagem desgastada por escritores e autores, e que carrega também o conceito precípuo de “lugar de castigo eterno para os maus”. E o que vira objeto de conflito e contestação, tanto por parte de Borges, como de vários outros, é a ideia de eternidade da pena.
 
Borges, então, levanta o argumento do teólogo evangélico Rothe, em 1869, de que “eternizar o castigo é eternizar o Mal”. Pois se tem uma ideia mais cara contra o que seja o inferno como castigo eterno, que é a ideia mais clara de uma teologia que sabe que a criação do mundo é obra de amor, e a predestinação entra nesta ideia como o destino universal da glória.
 
Por fim, aqui se conclui a posição borgiana diante de tal inferno : “Creio que no nosso impenetrável destino, em que regem infâmias como a dor física, todas as coisas extravagantes são possíveis, até mesmo a perpetuidade de um Inferno, porém acredito também que é uma irreligiosidade crer nele”.
 
AS VERSÕES HOMÉRICAS
 
Temos uma certa relatividade em relação com a inferioridade das traduções, para Borges, uma superstição, mesmo que lhe tenha passado a questão da tradução de Quixote como algo que não destroça o texto original, ao contrário de um poema de Gôngora, temos também o fato de que a tradução não deve ser um fator negativo em relação com os textos originais, uma vez e até mesmo quando estes texto originais se perdem no tempo, como quando se fala de textos da Antiguidade como  nos exemplifica Borges com a Odisseia de Homero.
 
Ou seja, da relatividade da qualidade de tradução, passamos à constatação borgiana de que a amplitude de um texto canônico não sofre com a ação livre de um tradutor, pois já quando um leitor se volta para um clássico como é a Odisseia, já teremos ouvido sobre a obra tanto e de tal maneira, que sempre que alguém se volta para textos como a Odisseia de Homero ou mesmo trechos bíblicos, já se trata de uma segunda leitura.
 
E ficamos com o fenômeno de que a tradução, neste caso, não tem o que destruir, pois o cânone é indestrutível, e seu caráter de mensagem já foi passado, já está cristalizado na consciência histórica, e a tradução, qualquer que seja o estilo ou método desta, só dá seguimento a um texto que não tem mais como desaparecer, mesmo que seus originais antigos sejam completamente desconhecidos da leitura contemporânea.
 
A riqueza e amplitude da tradução estão aqui desde já garantidas, as relações de grandezas da obra são abertas e plenamente adaptáveis. Há várias versões da Odisseia de um lugar incógnito e universal da obra que, no entanto, não se desfez.
 
NOTA SOBRE WALT WHITMAN
 
A busca de um livro absoluto, um livro que funcione como um tal arquétipo platônico que reúna em si todos os livros foi um sonho e uma prática de muitos autores, no que partimos de um Apolônio de Rodes, por exemplo, passamos por Camões, as transmigrações pitagóricas da alma em Donne, e a grandeza de um Milton que se dá com as culpas e o Paraíso, todos em busca de grandeza, tomar a obra absoluta pelo que ela implica de clichê, uma enormidade que tenha toda a História e toda a mitologia contida dentro dela.
 
Apenas quando Gôngora subverteu este conceito de livro absoluto como aquele que comporta uma grandeza histórica ou civilizatória, temos então esta ruptura do autor que nos dá este livro absoluto tratando de coisas frívolas que é o Soledades. O extremo então chega à Mallarmé que vai além do trivial e nos dá uma poesia sobre negativos, sobre ausências. Aqui o poeta segue a ideia de que as artes tendem à música, esta arte em que a forma é o fundo.
 
Temos ainda casos como o de Yeats que, em certo momento da virada para o século vinte, tenta flertar com um tipo de memória geral ou genérica da humanidade, que antecipa de certo modo os ulteriores arquétipos de Jung. E ainda, de outro lado, atos fundantes do Homem passam pela engenharia de Finnegan’s Wake, com a simultaneidade desta obra em relação com épocas diferentes, obra de Joyce que encerra um trajeto imenso do autor. E ainda, por fim, na poesia, temos Pound e T.S.Eliot no manejo poético de anacronismos para a construção de uma poesia de expressão aparente de eternidade.
 
Mas, em se tratando de Whitman, em 1855, temos aqui, as palavras do poeta inglês Lascelles Abercrombie, que diz : “Whitman extraiu de sua nobre experiência essa figura vívida e pessoal que é uma das poucas coisa grandes da literatura moderna : a figura dele mesmo”.
 
E temos um autor, Whitman, que Borges compara com sua biografia e sua obra, como um Ulisses que conta grandes feitos, mas que na sua vida real nunca saíra de Ítaca. As biografias de Whitman então são sempre este contraste gritante entre o autor e a pessoa, e Borges então nos denuncia que existem dois Whitmans : “o amistoso e eloquente selvagem de Leaves of Grass e o pobre literato que o inventou”. Por fim, Borges então constata, quando se fala de poesia e de poetas, que : “Byron e Baudelaire dramatizaram, em volumes ilustres, suas desgraças; Whitman, a sua felicidade”.
 
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

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