Camila Valadão anunciou relatório, observatório e emendas ao orçamento
“O nosso povo, o povo negro, sobreviveu às capturas, aos sequestros, aos açoites, às senzalas, às correntes e aos projetos inclusive de morte, de eugenia, que queria, entre outras coisas, para além da nossa morte, o fim da nossa existência. (…) É nessa sociedade racista que espaços como esse aqui não eram desejados para negros e negras”. A fala, da deputada Camila Valadão (Psol), em audiência pública realizada nessa quinta-feira (3), na Assembleia Legislativa do Espírito Santo (Ales), reforçou as dimensões históricas e estruturais do racismo que levam aos alarmantes índices de feminicídio contra as mulheres negras no Estado, que provocaram o debate promovido pela Comissão de Direitos Humanos da Casa.

Segundo dados da Anistia Internacional citados pela presidente do colegiado durante o evento, quatro mulheres são assassinadas por dia no Brasil, e 62% das vítimas de feminicídio são negras. No Espírito Santo, os relatos trazidos por defensoras públicas, ativistas e pesquisadoras apontam um cenário de subnotificação, ausência de políticas públicas eficazes e falta de estrutura para acolher e proteger as mulheres negras vítimas de violência.
Como encaminhamento imediato, Camila anunciou a produção de um relatório conjunto com o Instituto Elimu, entidade de defesa dos direitos da população negra capixaba que coorganizou a audiência. Além disso, a organização está com a proposta de criação de um observatório permanente sobre violência de gênero e raça, que deve reunir dados, diagnósticos e propostas de políticas públicas. “Nós queremos contribuir com essa formalização, exatamente porque, infelizmente, temos um apagamento dos dados de raça vinculado a vários indicadores sociais e também na área da segurança pública”, explicou a deputada.
A intenção, segundo ela, é que o relatório sirva de base para futuras proposições legislativas e para pressionar os poderes públicos por medidas mais efetivas. Entre os pontos mais graves levantados na audiência está a precariedade da rede de acolhimento a mulheres vítimas de violência. Atualmente, o Espírito Santo possui apenas um abrigo institucionalizado para esse público, com capacidade e estrutura limitadas. “A gente precisa de políticas mais rápidas, mais flexíveis para mulheres que são vítimas de violência. Embora o governo comemore que não teve feminicídio no último mês, as mulheres continuam sendo vítimas de outras formas de violência. Ainda não temos argumentos para comemorar”, ponderou.
A persistência da violência contra as mulheres negras se manifesta de diversas formas — do abuso sexual à violência institucional e obstétrica — agravadas pela ausência de políticas públicas adequadas, como destacaram os participantes da audiência. De acordo com a coordenadora de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública do Estado, Fernanda Prugner, as mulheres negras lideram todas as estatísticas de violência: doméstica, institucional, obstétrica e feminicídio.
“Todos os dias eu me coloco numa escuta ativa assistida das nossas usuárias da Defensoria Pública, que em sua maioria são mulheres negras e periféricas”, afirmou. Ela também elogiou a aprovação da Lei da Violência Obstétrica (Lei 12.194/2024), de autoria de Camila Valadão, como um avanço necessário para o enfrentamento desse cenário. “As mulheres negras também são as maiores vítimas de violência obstétrica. E essa violência ainda é invisibilizada, e a gente tem uma dificuldade muito grande de se falar sobre ela. Por isso que a gente precisa dar visibilidade”, alertou.
A presidente do Instituto Elimu, Nelma Monteiro, destacou ainda a violência política enfrentada por parlamentares negras que desafiam a lógica da sub-representação nos espaços institucionais, como o Legislativo e também o Executivo. “Não tem como enfrentar essa questão da mulher negra, de violência contra a mulher negra, se a gente não tiver parlamentares comprometidos com essa causa”, reforçou a militante do movimento negro capixaba.

Apesar das leis já existentes no país para combater os diversos tipos de violência aos quais as mulheres negras são diariamente submetidas, a especialista reforçou que essas normas, assim como os equipamentos especializados — delegacias, procuradorias, centros de referência — não funcionam plenamente se não houver representatividade nos espaços de formulação, decisão e implementação das políticas.
Outro ponto crítico destacado por Camila Valadão foi o uso do serviço de teleflagrante como substituto ao atendimento presencial nas Delegacias da Mulher, sobretudo no interior do estado. “As DEAMs [Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher] estão fragilizadas, os municípios não conseguem estruturar serviços de acolhimento e assistência. Nosso desafio é transformar isso em ações. Minha ideia é apresentar emendas ao orçamento para garantir recursos para as Delegacias da Mulher. O Espírito Santo precisa avançar, e isso precisa ser prioridade para o governo”, defendeu.
A deputada Iriny Lopes (PT), também presente na audiência, reforçou as críticas à precariedade do atendimento às mulheres vítimas de violência nos municípios capixabas. “Mesmo com leis que determinam, por exemplo, a criação de delegacias 24h para atendimento às mulheres vítimas de violência, o que vemos na prática são improvisos: puxadinhos, como as chamadas ‘salas rosas’, que não garantem um atendimento digno, humanizado e contínuo. Em muitos municípios, o atendimento é virtual, feito por delegacias de plantão que não são especializadas e não funcionam 24h. Isso é um descaso”, afirmou.
A partir da audiência pública, Camila afirma que todas as sugestões apresentadas no encontro serão sistematizadas para desdobrar em ações concretas, como medidas legislativas e indicações. “Nosso desafio agora é sistematizar tudo isso pra poder pensar em encaminhamentos: orçamento, projeto de lei, projeto de indicação. A ideia é transformar tudo que foi levantado na audiência pública em medidas concretas para enfrentar a violência de gênero e raça no Espírito Santo”, concluiu.

Mortalidade crescente
Com a maior taxa de feminicídio registrada entre os estados do Sudeste, Nordeste e Sul do País no último ano, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, o Espírito Santo aderiu ao Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios no último mês de novembro, durante o Encontro com Gestoras Estaduais de Políticas para as Mulheres, realizado em Brasília. A assinatura pode trazer avanços, mas esbarra na falta de articulação entre as políticas públicas no Estado, como avaliou na ocasião a representante do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Mulher do Estado (Cedimes) na Câmara Técnica do Pacto Estadual pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, Edna Martins Calabrez.
Mesmo diante da alta taxa de feminicídios, o Estado não apresenta políticas preventivas consistentes, nem prioriza investimentos robustos nessa área, destaca a conselheira. “O governo do Estado precisa ter uma perspectiva de maior investimento no enfrentamento, não só do feminicídio, mas da violência de gênero como um todo”, avalia.
O documento também traz um diagnóstico preocupante: entre 2019 e 2024, o número de feminicídios no Espírito Santo cresceu 11,7%, passando de 34 para 38 casos. A média da série histórica foi de 36 mortes anuais, e de 2023 para 2024 houve novo aumento, de 35 para 38 casos, segundo o Painel de Monitoramento de Violência contra as Mulheres da Secretaria de Segurança Pública (Sesp). O número de homicídios de mulheres no Estado também subiu: de 88 em 2023 para 93 em 2024, suteleperando inclusive o índice de 2019, quando foram registradas 91 mortes.
Além disso, aponta que, assim como no cenário nacional, a maioria das vítimas são mulheres negras: “Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que a maioria das mulheres assassinadas no Brasil são negras e têm entre 18 e 44 anos. Essa situação se mantém há vários anos e, em 2023, a diferença entre o número de mulheres negras e brancas vítimas de feminicídio aumentou ainda mais, ano em que 63,6% das vítimas de feminicídio foram mulheres negras e 35,8%, brancas. No cenário capixaba a situação não é diferente. Em 2024, 52,63% das mulheres vítimas de feminicídio foram pretas e pardas”.