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Deborah Sabará: de primeira porta-bandeira trans a ativista LGBT

[Podcast] Coordenadora da Associação Gold fala sobre preconceito, memória das travestis e políticas públicas

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Importante ativista da causa LGBTQIA+ no Espírito Santo, Deborah Sabará é atualmente coordenadora de Ações e Projetos da Associação Grupo Orgulho, Liberdade e Dignidade, a Gold, que atua desde 2005 na defesa dos direitos humanos.

Em entrevista ao Século Diário, ela falou de diferentes questões como ativismo, preconceito, políticas públicas, pessoas trans na política, memória LGBTQIA+ no Espírito Santo, e seu envolvimento com o carnaval, tendo sido a primeira porta-bandeira trans no Estado.

A entrevista pode ser lida abaixo em versão resumida em texto ou ouvida em formato de podcast no player a seguir ou por plataformas de áudio como Spotify e Anchor.

Os registros em vídeo das histórias do Ponto de Memória LGBTQIA+ citados na entrevista podem ser vistos no YouTube da Associação GOLD.

Queria que contasse um pouco da sua trajetória como militante. Como você começa a atuar nessa esfera política e social?

Eu iniciei a minha vida na militância nos questionamentos através de todas as negações que foram colocadas para mim já na infância, adolescência. Fui uma criança que sofreu muita perseguição, muitos insultos, apanhava, tudo isso me fazia questionar o por quê apanhava, porque eu era diferente, qual problema eu tinha, o que fiz de errado. Todas essas coisas me faziam me questionar.

Tenho uma família que boa parte dela é religiosa, naquela época, na infância, eu era muito participativa. Mas fui buscar outra religião que tivesse mais a ver com esses questionamentos da vida que a gente quer descobrir.

Fui encontrar as comunidades eclesiais de base, com um olhar diferenciado para as pessoas pobres, um olhar diferenciado de evangelizar. Desde a adolescência aprendi a respeito do racismo, da defesa da terra, da moradia, das matas e florestas, dos povos indígenas, de cuidar da população em situação de rua. E nessa minha vida percebo que tudo que defendo hoje, que trago para Associação Gold, tudo eu aprendi nas comunidades eclesiais de base, por ter participado delas e das pastorais da juventude e da criança. E eu utilizo hoje na minha militância.

Um das funções desenvolvidas pela Gold é servir como um espaço de referência para pessoas trans e LGBTQIA+. E você já falou também da proposta de se ter casa de acolhida com dormitório, o que tem acontecido em outros municípios do Brasil, o que é uma questão muito sensível, que envolve acolher pessoas em situação de muita vulnerabilidade por uma série de questões, e demanda uma estrutura e profissionais qualificados. Qual a importância de um espaço como esse para acolher e receber pessoas LGBTQIA+?

Diversos estados atuam com esse tipo de casa, é muito importante. Como no caso das crianças e adolescentes, permite retirar pessoas de suas casas caso haja um conflito por causa da sua orientação sexual ou por sua transição. É muito frequente as solicitações desse tipo de pedido.

Nos chamou atenção na Gold, recentemente, duas solicitações vindas de Nova Venécia. A gente queria debater a criação dessa casa LGBT, que poderia ser em Vitória na Associação Gold, com recursos do Estado, porque se for do município, poderia fechar só para munícipes de Vitória. A gente vai se deparar com a falta de política nesses municípios do interior, que nem tem Centro Pop, abrigo noturno, não têm essas políticas lá. Então a gente recebe demanda do norte do Estado para a capital, para a Associação Gold.

Muita gente discute quais os direitos da população trans, porque na sigla LGBT, a população que mais vai sofrer desde sua infância é a população T.

Deborah Sabará trabalhando na Gold durante a pandemia. Foto: Divulgação

Isso traz traumas muito grandes e a gente não tem essa casa no Espírito Santo, o que para mim é muito ruim, é algo muito urgente que a gente tenha essa casa para tirar essas pessoas das agressões, ter um tempo para estruturar um diálogo, criar um novo vínculo com a família, colocar família em formação sobre o que é LGBT, sobre o que é ser pai e mãe de LGBT, juntar os parceiros, acho que isso que a gente precisa com urgência.

Outro projeto bem interessante da Gold é a criação do Ponto de Memória “Aquenda as Indacas” para trazer um pouco da história e trajetória das pessoas e movimentos LGBTQIA+ no Espírito Santo. Gostaria que você contasse um pouco dessa iniciativa e dessas histórias.

Com esse projeto tenho uma satisfação muito grande. Sempre gostei de ouvir pessoas, ouvir histórias. Na minha transição sempre parava para ouvir as histórias das travestis.

Queria conhecer essas histórias, mas queria ofertar para as pessoas ouvirem também. Foi um sucesso de participação, teve reencontro de amigos que não se viam há 20 anos, foram diversas histórias que a gente tentou trazer.

Em alguns momentos ouvimos pessoas falarem “fez bem para minha saúde, fez bem vir contar minha história, me senti valorizada por vocês”.

E quais dessas histórias te marcaram mais? Quais gostaria de contar?

Eu falo que nós temos pressa, temos uma população idosa LGBT. A gente tá com pressa de contar essas histórias.

Mas eu acho a Cleópatra marcante. Era uma pessoa idosa muito conhecida pelo público jovem, que as pessoas riam muito dela, dos áudios que ela gravava no WhatsApp, das brigas e tretas que ela arranjava com as pessoas. Era uma pessoa idosa que sofria por querer estar dentro do público jovem. Isso é outra coisa, que temos que discutir: a padronização dos corpos, que padrão de corpo é esse que as pessoas querem? Precisamos fazer debate dentro do público LGBT, porque lutamos contra preconceito, mas temos uma população que reproduz o tempo todo preconceito e violência.

A gente quer que pessoas LGBT sejam antimachistas, antirrascistas, antifascistas, que não sejam gordofóbicas, que não sejam capacitistas, que seja um movimento realmente livre e adepto a todas as pessoas.

A história da Cleópatra chama bastante atenção porque a gente nunca tinha conseguido um vídeo. Marcamos um dia e ela não veio. Mas no dia do Ponto de Memória ela compareceu, foi muito legal. A Cleópatra morreu em plena pandemia.

Atividade no Ponto de Memória. Foto: Divulgação

A Waleska di Pigalle contou histórias de várias tretas, também do movimento LGBT, dos concursos de miss das travestis. Ela também veio a falecer. São duas histórias de pessoas que vieram a falecer e a gente conseguiu registrar suas histórias.

Outra história que eu quero trazer é da Tieta. Ela esteve na Gold na semana passada para buscar cesta básica. E eu estive presente nessa história quando conheci a Tieta. Me falaram que ela tinha adotado uma senhora, quando um amigo me contou, falei que queria ir lá na hora, queria ver. Ele contou que Tieta quando nasceu conheceu uma senhora, foi vizinha da senhora, que teve filhos. Mas todas as pessoas da família dessa senhora vieram a falecer e ela morava sozinha e sem condições. Tieta, que era vizinha, pegou ela para criar. Essa senhora tinha 100 anos de idade. Fui lá na casa e passei a tarde com ela, que contou a história.

Você também tem uma história muito interessante. Foi a primeira porta-bandeira trans no Espírito Santo. O carnaval é um momento muito importante pra população LGBTQIA+. Como foi essa história?

Eu conheci o carnaval na minha infância, com meus irmãos que eram passistas da escola verde e rosa de Maruípe, conhecida como “a venenosa de Maruípe”, a escola Andaraí. Lembro de estar em alguns espaços assistindo escolas de samba, lembro dos meus irmãos me levando para assistir aos desfiles

Eu falava para as pessoas que tinha vontade de ser porta-bandeira. Quando eu estava na Imperatriz do Forte, fui convidada para ser porta-bandeira, porque eu já participava de um outro movimento, que era o junino. Então antes de contar a história de porta-bandeira, vou contar do movimento junino, porque fui a primeira travesti a poder dançar quadrilha num concurso no gênero feminino.

Isso não era permitido. Quando fui entrar no grupo folclórico Arraiá do Zé Barriga, uma quadrilha de Barcelona [bairro da Serra], eu não podia porque eu sou uma pessoa trans.

Aí a gente se reuniu no Teatro Carmélia, onde teve uma reunião e foi um debate mega preconceituoso, imagina…em 1998. Teve argumento de algumas pessoas. Um argumento pontual foi de Marco Aurélio, da comunidade do Forte São João. Ele fez a defesa, me ajudou, e a gente venceu. Eu poderia dançar no gênero feminino, no gênero em que eu estava.

Fiquei muito reconhecida pelo movimento de quadrilha, ganhei vários prêmios e medalhas como dançarina, e tinha que me sobressair porque eu sofria muito.

Deborah na época de dançarina de quadrilha. Foto: Divulgação

Imagina eu numa festa de comunidade botando o vestido para dançar e envolta de mil pessoas com a mesma cultura, com a mesma arte, dizendo “olha o viado, olha o viado”. Em São Pedro acho que foi a experiência mais dramática para mim. Eles tentaram de brincadeira colocar fogo no meu vestido. Eu vestida no meu vestido e você imagina se não conseguissem apagar. Eu pegaria fogo viva. E isso eram as crianças, impulsionadas pelos adultos. Isso me marcou muito. Teve comunidades em que eu ia dançar e era preciso me colocar dentro do ônibus e só me tirar pra dançar na hora da quadrilha entrar.

Hoje os quadrilheiros entendem que foi muito importante para aquele momento o que eu fiz para dentro da quadrilha. Então a visão foi mudando. A quadrilha foi recebendo várias pessoas LGBT, já tinha, mas foi recebendo mais pessoas, que inclusive transacionavam de gênero para dançar quadrilha.

Aí em 2009 eu recebo o convite do Marco Aurélio e do Osvaldo Garcia, que hoje é carnavalesco da MUG. Os dois estavam naquele momento também do debate sobre minha participação na quadrilha. Viram aquele desejo meu, entenderam aquele ato político, e pensaram: “vamos fazer o mesmo na Imperatriz do Forte no carnaval capixaba”. Também não deu certo, também teve debate, prós e contras, inclusive da população LGBT.

Houve debate, saiu na televisão, na rádio, em vários veículos de comunicação. Era inaceitável para uns, aceitável para outros, era um ato de coragem. Chegou o dia da reunião e foi aprovado eu ser porta-bandeira. Mas deram um castigo, podia ser, mas não podia ser a primeira porta-bandeira, a primeira porta era inviolável, a primeira porta-bandeira tinha que ter vagina. Então era um prêmio de consolo.

Ai eu fiquei alguns anos na escola, eu mesma fabricava minhas roupas, idealizava minhas roupas. Fiquei alguns anos na Imperatriz do Forte. Hoje eu lembro que inclusive sofri muito preconceito. As escolas de samba tem a noite das porta-bandeiras, em que se reúnem todos os pavilhões, têm alguns passos marcados, que juntam as bandeiras, se entrelaçam, é muito lindo. Eu passava a noite muito isolada, porque as porta-bandeiras não conversavam comigo. Então tive muito apoio da porta-bandeira Andressa, da Jucutuquara, que me deu minha primeira roupa, da porta-bandeira Renata, da São Torquato, uma mulher com cabeça avançada sobre essas questões, e de outros mestres-salas. Até para conseguir um parceiro para mim era muito difícil, as pessoas tinham receio de dançar com a porta-bandeira travesti.

Pela Imperatriz do Forte, Deborah Sabará se tornou a primeira porta-bandeira trans no Espírito Santo. Foto: Facebook

Mas foi muito bom para fazer esse debate. Acho que abri caminhos. A gente teve – e muita gente desconhece – travestis que foram rainhas de bateria do carnaval, tivemos travestis carnavalescas, coreógrafas da comissão de frente, mas que foram invisibilizadas. Espero que outras pessoas venham e que elas consigam aparecer.

Sem dúvidas, é também uma grande história. É interessante que a História, com H maiúsculo, não é linear. Às vezes pensamos que estamos avançando, mas logo vemos retrocessos. Enquanto você falava, lembrei que recentemente um vereador de Vitória [Gilvan da Federal, do Patriota] propôs um projeto de lei para que pessoas trans não pudessem competir de acordo com sua identidade de gênero. Como analisa esse momento que vivemos?

É o mesmo vereador sempre, temos que fazer esse apontamento. É o mesmo vereador que demarcou seu pensamento homofóbico, machista e inclusive racista na Câmara de Vitória.

E esse vereador sempre fez o papel desses políticos homofóbicos. Sempre na época de eleições querem chamar a atenção da população para questões que envolvem a população LGBT, que sempre foi usada como barganha para tomar posicionamentos. Novamente não é novidade, isso já rodou o Brasil todo e agora vem à tona com esse vereador de Vitória.

Parece que ele precisa estar na mídia, que precisa se apresentar para a mídia, e fica criando essas coisas. A política deles é uma falácia. Não funciona no Governo Federal e não vai funcionar com esse vereador com os mesmos pensamentos bolsonaristas. O povo passa fome, está precisando de emprego. O Brasil passa por sérias situações. Eu como pessoa trans, atuando na Associação Gold, com um salário, estou confortável. Mas sei que tem milhões de meninas travestis que não estão confortáveis. O número de mulheres travestis em privação de liberdade, em situação de rua, só aumenta. Por falta de escolaridade, de emprego. Por isso a casa de acolhimento é uma política para o desencarceramento e contra a a situação de rua para a população trans.

Precisamos de outras políticas e essas outras políticas não são tão rápidas, como matar uma pessoa. Elas demoram anos de implementação, décadas para implementar, para reimplantar a floresta, fazer diálogos, respeitar as pessoas, ouvir suas histórias e criar políticas ouvindo elas, como faz o sistema SUS, é algo demorado.

E a política que essas pessoas querem é muito mais rápida, que é a de acabar com a vida de alguém que comete algum ato e de pessoas que são diferentes, como LGBTs.

Especialmente nas últimas duas eleições, tivemos grande avanço de forças de extrema-direita, mas por outro lado foram registradas questões interessantes como eleições de pessoas trans, como podemos citar a Érika Malunguinho [Psol], em São Paulo, a Benny Brioli [Psol], vereadora de Niterói que inclusive teve que se exilar do país por conta de ameaças de morte. Como você vê esse movimento de ocupação dos espaços políticos?

Eu acredito muito nessa representatividade. Ela é muito importante, mas não vou negar que, em alguns momentos, algumas pessoas vão utilizar essa representatividade para não representar a gente. Em Cariacica, no Estado, tivemos uma candidata travesti bolsonarista.

Eu teria o maior prazer de votar em pessoas heterossexuais que têm compromisso histórico na defesa dos direitos humanos e com a pauta LGBT.

Lissa de Paula/ Ales

O movimento LGBT em Niterói é muito forte, ali e outras cidades próximas caminharam por eleições repetidas progressistas. A força do movimento LGBT estruturado naquele município, o pensamento progressista dos vereadores que lá estiveram, ajudaram e contribuíram para a eleição dessa vereadora.

Então algumas meninas que chegaram a esse debate estavam também em coletivos, no debate na construção da política LGBT, estiveram junto com o movimento, e isso contribuiu bastante. Não sei se vamos ter isso na Grande Vitória tão consolidado. Tivemos experiência da Moa em Nova Venécia, se destacava no seu município, conseguiu se eleger, foi presidente da Câmara, mas era apoiadora do Magno Malta [PL].

Finalizando e buscando alguma síntese, quais considera os principais desafios para as políticas LGBTQIA+ no Espírito Santo?

Um centro de referência de cidadania específico para população LGBT tem um caráter de urgência. O governo vem implementando vários centros de referência, mas acho que faltou o ‘timing’ para o centro de referência LGBT. A gente tem condições de executar isso aqui nas cinco salas da Gold, com profissionais da área jurídica, psicosocial, arteterapia. Esse centro de referência pode ter parcerias enraizadas com vários outros órgãos, seja do SUAS [Sistema Único de Assistência Social], seja da saúde, e outros.

O centro de referência, a casa de acolhimento para pessoas LGBT, são importantes. E temos que pensar nas pessoas idosas LGBT, também precisamos pensar nessas políticas.

A gente precisa trazer cursos profissionalizantes e, mais do que isso, uma ação com empresários para debater empregabilidade para pessoas trans. É preciso dialogar isso e está demorando muito. Uma coisa é a Gold chamar um e outro empresário, outra coisa é o Estado, a Secretaria de Direitos Humanos, onde está a pauta LGBT, e ajudar a chamar, aí acontece com maior rapidez. A gente tem pressa para essas políticas acontecerem.

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