Sábado, 27 Abril 2024

Documento denuncia situação de pessoas trans em presídios

Dborah-Sabara Lissa de Paula/Ales

O Espírito Santo foi um dos sete estados brasileiros participantes de uma pesquisa que ajuda a traçar um panorama sobre a situação de travestis e transexuais dentro do sistema prisional. Recém-lançado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o Dossiê TransBrasil aponta uma série de questões como o contexto geral e os instrumentos jurídicos protetivos, o perfil das internas, a ausência de dados sobre a transmasculinidade nas penitenciárias, e relatos de pessoas egressas do sistema prisional.

Desde a realização do relatório estadual até a publicação do documento final, houve uma mudança substantiva no sistema carcerário capixaba com a criação da primeira unidade especial para população LGBTQIA+ na Penitenciária de Segurança Média 2 (PSME2), no complexo de Viana, uma das sugestões apresentadas pela pesquisadora capixaba do Dossiê, Déborah Sabará, integrante da Associação Gold. Ela aponta fatos positivos com a nova unidade, como o exemplo do funcionamento da escola no presídio e sua proposta pedagógica, mas entende que muitas das denúncias e reivindicações apresentadas ainda fazem parte da realidade de muitas presas. 

Déborah Sabará, da Associação Gold, foi a pesquisadora responsável pelo levantamento no Espírito Santo. Foto:Divulgação

Nas visitas a dois presídios, a pesquisa identificou no Espírito Santo a presença de 22 pessoas que se declararam como trans. Sem haver um serviço específico para essa população, o relatório lembra que podem acontecer raspagem de cabelos, obrigatoriedade de uso de roupas que não condizem com a identidade de gênero, expondo partes íntimas do corpo das pessoas trans, o que pode acontecer ainda na triagem na delegacia. Os registros de casos de violência e transfobia são vários, tanto de parte de outros internos como de funcionários do sistema carcerário.

A questão da saúde física e mental também é importante e foram registradas queixas em relação ao atendimento de profissionais como médicos, psicólogos e assistentes sociais dentro das unidades em relação às pessoas trans, tanto masculinas como femininas. O desrespeito ao nome social é uma das formas de agressão registradas. "O direito ao nome social está protegido desde 2009 e ainda é usado o tratamento desrespeitoso com a identidade de gênero da pessoa. É um direito, não tem mais como aceitar isso. É preciso ensinar os profissionais", diz. A realização de mutirões de retificação do nome social aparece entre as sugestões apresentadas no dossiê.

Preocupa o tratamento e acompanhamento das Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), como a manutenção do tratamento retroviral para pessoas com HIV, que permite que manter a carga viral indetectável e impedir a transmissão do vírus. A falta de acesso a preservativos de látex e de testagens regulares em massa também são registrados no documento da Antra. Também aponta dificuldade de pessoas trans manterem o processo de hormonização. No Espírito Santo, aponta o relatório, existe apenas um Ambulatório de Diversidade de Gênero e este não dá conta de realizar atendimento a toda população de pessoas travestis, transexuais e não binárias.

Há outras questões importantes. "Existe uma dificuldade na autorização de visitas conjugais para população LGBTQIA+, pois não conseguem provar sua relação afetiva com seus companheiros. É importante mencionar que a união estável ou o casamento homoafetivo não é uma realidade de toda a população GBT, sendo necessário a criação de outras formas de provar a relação conjugal das pessoas", considera Déborah. Ela aponta também o caso de relacionamentos afetivos entre os internos que se conheceram dentro da unidade, que muitas vezes sofrem diferentes tipos de restrições e retaliações.

Uma caso dramático, narrado por internas na pesquisa é de uma mulher trans que tinha relacionamento com um homem bissexual, ambos reclusos na mesma unidade, que foram separados em locais diferentes do Estado. Leona, a interna, teria entrado em depressão profunda por conta da separação forçada e pela falta do companheiro. "As internas relataram que Leona, solicitou ajuda constantemente ao serviço social e psicológico para dizer que estava sofrendo demais pela ausência do companheiro. No entanto o pedido dela não foi atendido, o que acarretou em seu suicídio, este caso foi relatado por demais internas".

As visitas familiares são outro tema relevante para se pensar nas especificidades das pessoas trans. Algumas delas não possuem vínculos com a família e gostariam de receber visitas de outras amigas ou amigos LGBT. Outros relatos apontam grandes dificuldades financeiras das famílias para arcar com passagens de ida e volta até os centros de detenções para realizar as visitas aos parentes em cárcere. 

"É necessário traçar estratégias junto ao Estado para a possibilidade de locomoção gratuita destes familiares para realização de visita aos internes, ou até mesmo na criação de galerias de referência GBT em uma das unidades do norte e do sul do Estado, minimizando assim o impacto de quem mora fora da região metropolitana da Grande Vitória, se tornando possível uma frequência nas visitas para as/os internes GBT. Outras, relatam não ter vínculo com a família, e que gostariam de receber visitas de outras amigas ou amigos LGBT", aponta o relatório de pesquisa de Déborah Sabará. O documento também sugere criação de programas de envio de cartas ou ligações por telefone ou chamada de vídeo com parentes ou com voluntários dispostos a fazer esse tipo de acolhimento.

Déborah aponta que no Espírito Santo faltam dados e um diagnóstico sobre a população trans em situação de cárcere, o que dificulta a criação de políticas públicas para resolver os problemas que se relacionam com esse segmento populacional. Ela sugere que isso seja feito em parceria entre os conselhos estaduais LGBTQIA+ e de Direitos Humanos e órgãos do poder público como a Secretaria Estadual de Justiça (Sejus).

Para a pesquisadora todas as pessoas privadas de liberdade podem contribuir para a melhor gestão dos espaços, pelo que propõe a criação de processo de participação democráticos, que abram espaços de escuta aos internos para compreender melhor suas particularidades e complexidades, incluindo da população trans e LGBTQIA+.

Mas para ela, é preciso também avaliar políticas preventivas. "A gente precisa pensar em como fazer uma mudança na vida daquela população LGBTQIA+, não só dentro mas também fora do cárcere. Se a gente fizer um levantamento do perfil dessa população veremos que muitos estão condenados por furto, tráfico e outras incidências que podem ter relação com condições de marginalização, como a falta de empregos", diz.

O texto de lançamento do Dossiê da Antra, que contou apoio do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), resume bem a contribuição que o documento busca deixar. "O objetivo da pesquisa foi conhecer mais de perto a situação de travestis e transexuais em privação de liberdade a fim de identificar estratégias de atuação e incidência voltadas para a proposição de políticas públicas de melhoria da qualidade de vida dessa população, bem como para a redução dos processos de criminalização e incriminação das pessoas trans, assim como promover o debate sobre as violências e violações de direitos humanos enfrentados por essas pessoas em suas experiências no cárcere".

Além do Espírito Santo, o Dossiê contou com participação de pesquisadoras de Alagoas, Bahia, Mato Grosso do Sul, Pará, Pernambuco e Sergipe. Déborah Sabará afirma que já enviou o documento a algumas autoridades do Espírito Santo e que uma comitiva irá a Brasília apresentar os resultados, tendo agendas já confirmadas com os ministérios da Saúde e dos Direitos Humanos.

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