Movimento negro ocupa galeria da Câmara da Serra contra racismo religioso
Militantes de organizações do movimento negro, representantes de religiões de matriz africana e apoiadores da causa antirracista ocuparam as galerias da Câmara da Serra na tarde desta quarta-feira (14), para denunciar casos recorrentes de violência institucional, racismo religioso e intolerância que, segundo eles, têm sido promovidos e legitimados dentro da própria Casa Legislativa.
Os manifestantes fixaram cartazes contra o racismo religioso nos vidros da galeria, entoaram palavras de ordem como “Não nos representa!”, no momento em que o vereador Antonio C&A (Republicanos) subiu à tribuna, e cantaram: “A Umbanda é amor”. Ao mesmo tempo, um grupo de cristãos conservadores começou a entoar louvores e erguer Bíblias, em uma tentativa de competir pelo espaço sonoro.

O ato foi provocado por um episódio ocorrido nessa segunda-feira (12), quando a servidora pública Saionara Paixão, que atua na cabine de comunicação do plenário e é adepta da religião Umbanda, foi alvo de intimidações por parte de Antonio C&A e seus aliados. Saionara expressou desconforto com falas de cunho intolerante proferidas durante a sessão, o que levou o parlamentar a se dirigir até ela para repreendê-la. A discussão resultou na interrupção da sessão.
Saionara relata que o episódio a deixou profundamente abalada. “Apesar do trauma, vim trabalhar na manhã de hoje. Mas, ao chegar na recepção, fui informada de que não poderia entrar sem autorização da empresa terceirizada Flex, para a qual presto serviço”, contou. Ela soube ainda que sua função já estava sendo desempenhada por outra pessoa.
Ainda na segunda, ela havia tentando um registrar um Boletim de Ocorrência (BO) na Delegacia de Laranjeiras, mas foi seguida por Antonio C&A e assessores. De acordo com Ivo Lopes, presidente do Conselho Municipal de Igualdade Racial da Serra, a servidora sofreu tentativas de intimidação. “Um assessor dele chegou a dizer que, se ela fizesse o boletim, sofreria consequências. Isso é inaceitável”, denunciou.

Ele explicou que a servidora não se sentiu segura para registrar a denúncia naquele momento, mas retornou na terça-feira (13) à Delegacia da Mulher para formalizar o boletim com apoio do movimento. “Estão se escondendo atrás da Bíblia para atacar nossas religiões. Não vamos aceitar. Isso é racismo religioso, é violência institucional. E seguiremos resistindo, denunciando e defendendo nossa ancestralidade”, afirmou.
Ivo relata que o conflito entre a servidora e o vereador tem se agravado desde meados de março, quando foi realizada a sessão solene em homenagem aos 175 anos da Insurreição de Queimado. No dia seguinte à solenidade, que contou com a participação de representantes de religiões de matriz africana, a Casa realizou um culto cristão no plenário, e não em gabinetes, como é de praxe, ressalta. “Chegou até nós que o vereador perguntou a Saionara se ela estava sentindo um ‘cheiro demoníaco’. Esse tipo de fala é carregado de intolerância, pois há uma tentativa sistemática de associar religiões de matriz africana ao demônio”, relatou.
Outro ponto de tensão nas últimas semanas foi o debate sobre a alteração do nome da Comissão de Direitos Humanos, do Negro, da Mulher, do Idoso, da Criança e do Adolescente e das Pessoas com Deficiência para “Comissão de Direitos Humanos, da Igualdade Racial, da Mulher, do Idoso, da Criança e do Adolescente, dos Povos Tradicionais e das Pessoas com Deficiência”. Na ocasião, C&A se posicionou contra a mudança e questionou o significado de “povos tradicionais”. Para o movimento, a postura do parlamentar revelou despreparo e tentativa deliberada de deslegitimar pautas históricas do povo negro.
O representante do Fórum Estadual de Povos Tradicionais de Matriz Africana, Ogã Marcos de Odé e conselheiro municipal de Direitos Humanos da Serra apontou o racismo institucional como raiz do problema. “Eles se valem do poder de vereador para atacar nossa fé. Esse racismo não é novo, está entranhado nas instituições. Por isso estamos aqui: para dizer que não vamos nos calar, exigimos respeito e o cumprimento das leis”, enfatizou.
Antônio Carlos do Nascimento, do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira (Cenarab), também cobrou posicionamento firme dos parlamentares. “Essas agressões não são só da Serra, acontecem em todo o Brasil”, observou.
Para Pai Brazinha, da União de Matrizes Africanas, há um problema grave de representatividade. “Como alguém que nem sabe o que são povos tradicionais pode estar numa Comissão de Direitos Humanos? Ele mora na minha comunidade, onde temos 46 povos tradicionais. Se quiser, eu levo ele casa por casa para conhecer” afirmou.
A militante do Movimento Negro Unificado (MNU), Luiza Dalmaso, apontou o desrespeito às políticas públicas de reparação histórica. “O município da Serra é majoritariamente negro. Não podemos tolerar discursos que dizem que lutamos por ‘mimimi’. Exigimos respeito à nossa história e ancestralidade”, destacou.
Ela defende que não se trata apenas de dizer que se tem direito à fé, mas de garantir respeito a todas as crenças. “É inadmissível que, num município com maioria negra, nossos direitos, nossa história e nossa ancestralidade sejam atacados dentro do espaço público”, criticou.

Em nota, a Câmara da Serra informou que recebeu representantes da Comissão de Militantes do Movimento Negro em reunião acompanhada pela Secretaria de Direitos Humanos, e disse “reafirmar seu compromisso com a escuta ativa, o diálogo aberto e o respeito à pluralidade e à democracia”. A nota acrescenta que “processos administrativos devem ser motivados por denúncias formalizadas” e que os representantes do movimento se comprometeram a oficializar as demandas pelos canais adequados.