Júlia Alves, coordenadora do VAT, convoca trabalhadores à luta contra superexploração
“Essa não é uma pauta de rede social. É uma pauta orgânica e legítima da classe trabalhadora brasileira, resultado de décadas e décadas de vilipêndio dos direitos trabalhistas nesse país”. A fala da deputada estadual Camila Valadão (Psol), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, durante audiência pública sobre a escala 6×1, reforça a reivindicação por dignidade, saúde, tempo livre e justiça social de uma classe que está perdendo a paciência diante da superexploração a qual é submetida.

O fim da jornada de seis dias consecutivos de trabalho para apenas um de descanso foi debatido na noite dessa quarta-feira (21), na Casa Legislativa, na audiência convocada pelo colegiado com participação de coordenadores e militantes do movimento Vida Além do Trabalho (VAT), parlamentares, organizações sindicais e trabalhadores, que denunciaram as consequências físicas, mentais e sociais do regime ainda vigente no país. Camila reforçou que essa escala é “uma forma contemporânea de escravização”. “Estamos falando de um perfil racializado e vulnerável, de jovens negros submetidos a um regime de hiperexploração”, afirmou.
Wesley Fábio Silva, da coordenação nacional do VAT, compartilhou sua trajetória pessoal, marcada pelo adoecimento precoce após se ver forçado a abandonar os estudos e trabalhar nesse regime 6×1: “Em dez meses, engordei dez quilos, deixei de estudar, adoeci mentalmente e fisicamente. A escala 6×1 foi onde minha vida parou”, enfatizou. Ele se indentificou como um entre mais de um milhão de trabalhadores que se reconheceram no desabafo de Rick Azevedo, fundador do movimento, e a partir dessa aproximação iniciou sua militância. “Não tinha acesso a esse meio político, achava que não era para mim, mas o Rick disse que queria os trabalhadores lutando ao lado dele”, relata.

A coordenadora estadual do VAT, Júlia Alves, também trouxe outro relato de adoecimento: “Eu tive depressão, parei de comer, de dormir, tive que sair do trabalho. Isso é realidade para milhões”. Ela citou dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) que apontam que 65,8% dos trabalhadores formais no Brasil estão na nessa escala, dos quais 65% recebem até dois salários mínimos, e 42% até um salário mínimo.
Diante desse quadro, a militante defendeu a pressão popular sobre o Congresso Nacional para a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 8/25, de autoria da deputada Erika Hilton (Psol-SP). A matéria altera o inciso XII do artigo 7º da Constituição e estabelece a “duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e 36 horas semanais, com jornada de trabalho de quatro dias por semana, facultada a compensação de horários e a redução de jornada, mediante acordo ou convenção coletiva”.
O texto foi protocolado na Câmara dos Deputados em fevereiro último, com 234 assinaturas, 63 a mais que o mínimo necessário para iniciar a tramitação, e também terá que passar pelo Senado. “O fim da escala 6×1 é urgente e iremos às ultimas consequências. Se for preciso, vamos fechar Brasília”, convocou.

Mitos
Desmistificar a ideia de que o fim da 6×1 é um tema restrito à internet foi um dos focos centrais durante a audiência. “Quem acha que isso é coisa da internet, nunca foi à rua panfletar. O que a gente encontra é acolhimento, identificação. O povo entende que essa é uma pauta concreta e urgente”, destacou a vereadora de Vitória Ana Paula Rocha (Psol).
Na mesma linha, o dirigente da Intersindical, Carlos Pereira de Araújo, conhecido como Carlão, classificou o movimento contra a 6×1 como “o principal movimento da classe trabalhadora brasileira das últimas décadas”. Para ele, a luta surge “pela base, nos supermercados, nas padarias, nas lojas”.

Outro mito enfrentado foi o de que o fim da escala 6×1 resultaria em desemprego. Para Camila Valadão, a lógica é oposta: “Dizem que vai quebrar o país, mas o que está quebrado são os trabalhadores. Mesmo do ponto de vista capitalista, trabalhadores descansados são mais produtivos. Reduzir a escala é gerar mais empregos, distribuir o trabalho”, argumenta.
A crítica à concentração de lucros em grandes empresas que empregam nessa jornada foi destacada por Vinícius Machado, coordenador estadual do VAT, que apontou para os lucros trilionários das 30 maiores redes varejistas no último ano. “Eles dizem que acabar com a 6×1 vai quebrar as empresas, mas é esse setor que paga os piores salários e lucra com a exploração”, observou.
Além disso, reforçou o apelo para que o presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), desengavete a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que propõe o fim da escala e permita que a proposta avance, tramite nas comissões e seja votada.
Uma das estratégias discutidas para impulsionar o debate é a realização de um plebiscito popular, que incluirá questões como o fim da escala 6×1, a redução da jornada de trabalho e a isenção do Imposto de Renda para quem recebe até R$ 5 mil.
Ao final da audiência, Camila Valadão propôs a criação de uma Frente Estadual pelo Fim da Escala 6×1, com campanhas, cartilhas informativas, abaixo-assinados e articulação direta com a tramitação do projeto de lei na Assembleia. “É hora de construir uma massa crítica e ocupar as ruas”, enfatizou.
Projeto no Estado
Em novembro de 2024, a deputada apresentou o Projeto de Lei 635/2024, para extinguir a escala 6×1 nos contratos de fornecimento de mão de obra e serviços firmados pelo Governo do Estado. A matéria, que seguirá para análise nas comissões de Justiça, Direitos Humanos e Finanças, antes de ser votada em plenário, recebeu uma emenda da própria Camila em fevereiro deste ano, para incluir contratações feitas por concessões e permissões de serviço público, abrangendo setores como transporte, energia e água. “O Estado tem que dar o exemplo”, ressalta.
Ela relatou que um projeto semelhante apresentado pelo vereador de Vitória Professor Jocelino (PT) foi barrado na Comissão de Constituição e Justiça de Vitória. “Mas a luta continua. Essa pauta está ganhando o Brasil, o parlamento, porque une toda a classe trabalhadora”, afirmou.
O movimento Vida Além do Trabalho, surgido a partir do desabafo de Rick Azevedo nas redes sociais, se consolidou como uma força nacional que tem mobilizado trabalhadores, jovens, mulheres e setores historicamente marginalizados, como também pontuou a militante do VAT Camila Paulino. “Estamos falando de um movimento que vai além do fim da escala 6×1. É contra a pejotização, contra a destruição dos direitos, estamos sendo atacados até pelo STF e precisamos continuar atentos e organizados”, alertou.

Mobilizações
O fim da escala 6×1 foi um dos temas centrais da agenda unificada de mobilizações que ocorreram em todo o país no Dia do Trabalhador, organizadas pelo Movimento Vida Além do Trabalho (VAT), em articulação com centrais sindicais e partidos do campo progressista. Em Vitória, a marcha saiu da Praça Costa Pereira, no Centro da Capital, e seguiu até o Sambão do Povo, no bairro Mário Cypreste.
Ao longo do percurso, as lideranças ressaltaram o caráter histórico desse 1º de Maio, que marca uma virada na luta por direitos trabalhistas após anos de retrocessos, com uma proposta que unifica as classes populares e pode fazer “uma revolução nesse país”, com afirmou Rick Azevedo.

Impactos na Saúde
A sobrecarga de trabalho imposta pela jornada tem provocado graves prejuízos, como evidenciam os dados do Ministério da Previdência Social. Em 2024, o número de brasileiros afastados por transtornos mentais e comportamentais atingiu o maior patamar dos últimos dez anos, crescendo 67% em relação a 2023.
Mais de 440 mil trabalhadores foram afastados, sendo os principais motivos transtornos de ansiedade (141.414 casos), episódios depressivos (113.604) e transtorno depressivo recorrente (52.627). Além disso, foram registrados afastamentos por transtorno afetivo bipolar (51.314), transtornos mentais e comportamentais relacionados ao uso de substâncias psicoativas (21.498) e reações ao estresse grave (20.873).
Também aparecem na lista casos de esquizofrenia (14.778), transtornos decorrentes do uso de álcool (11.470) e cocaína (6.873). O levantamento revelou que os afastamentos por transtornos de ansiedade aumentaram mais de 400%, enquanto os episódios depressivos quase dobraram durante a série histórica.
Para o secretário de Saúde do Trabalhador da CTB, Fábio Gama, a discussão sobre a escala 6×1 não pode ser desconectada da saúde física e mental. “A 6×1 transforma o trabalhador em máquina. Não é possível continuar adoecendo e perdendo vidas em nome da produtividade”, disse.
Rodolfo Gomes Amadeo, do Movimento da Advocacia Trabalhista Independente (Mati), citou dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) que mostram que o Brasil tem uma das maiores cargas anuais de trabalho no mundo, cerca de 1,9 mil horas por ano. “A luta pelos direitos sociais começa pela reivindicação do tempo. A vida não pode ser apenas trabalho”, apontou.