Ato público e documentário sobre o caso da menina de São Mateus integram as ações

A Frente pela Legalização e Descriminalização do Aborto do Espírito Santo (Flaes) se articula nesta semana em uma série de ações públicas e educativas para denunciar o avanço de pautas conservadoras que ameaçam o direito ao atendimento em saúde de meninas e adolescentes vítimas de violência sexual. As ações fazem parte de um esforço nacional pela derrubada do Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nº 3/2025, apelidado de “PDL da Pedofilia”, aprovado pela Câmara dos Deputados na última quarta-feira (5).
A proposta busca suspender os efeitos da Resolução nº 258/2024 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que regulamenta o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual e garante o acesso à interrupção legal da gestação nos casos previstos por lei. As mobilizações dessa semana no Estado incluem um ato público na noite desta terça-feira (11), em frente à Assembleia Legislativa, e uma sessão de cine-debate na quinta-feira (13), no espaço cultural Casa 155, em Vila Velha.
A revogação da resolução foi articulada pelo deputado Luiz Gastão (PSD-CE), presidente da Frente Parlamentar Católica, que alegou que o texto “violava o direito à vida”. O projeto segue agora para o Senado e, se aprovado, não poderá ser vetado pelo governo federal. Sete dos dez deputados federais capixabas votaram pela suspensão da resolução: Gilvan da Federal (PL), Dr. Victor Linhalis (Podemos), Gilson Daniel (Podemos), Da Vitória (PP), Evair Vieira de Melo (PP), Amaro Neto (Republicanos) e Messias Donato (Republicanos). Os contrários foram Helder Salomão e Jack Rocha, do PT, e Paulo Foletto (PSB).
Em nota, a Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto (NPLA) classificou a votação como “um ataque frontal à proteção da infância e aos direitos reprodutivos” e “um retrocesso brutal que atenta contra a dignidade de meninas e adolescentes”, e convocou mobilizações pelo país.
Para a representante da frente estadual, Beatriz de Barros, o projeto representa um ataque direto à política pública de proteção infantojuvenil e à própria concepção de cuidado. “O PDL tenta transformar o atendimento de vítimas de violência sexual em uma questão criminal, e não de saúde pública. Isso é uma disputa reativa que criminaliza o cuidado e ameaça todos os serviços que hoje garantem o atendimento integral às meninas e adolescentes que sofrem violência sexual”.
Ela lembra que a Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, realizada recentemente, reafirmou a necessidade de que cada estado tenha ao menos um hospital apto a realizar a interrupção da gestação em casos de violência sexual, inclusive acima de 20 ou 22 semanas. “É uma forma de diálogo institucional que ainda temos, mas precisamos cobrar que essas resoluções sejam de fato implementadas”, explica.
As estratégias dos movimentos feministas capixabas para apoiar as vítimas, segundo Beatriz, têm se concentrado na educação, disseminação de informações qualificadas e ações de rua. “É preciso informar, formar e mobilizar. Sem informação, o direito não se efetiva. A gente atua nas escolas, nas conferências, nas redes sociais e nas ruas para enfrentar o medo e a desinformação que cercam o aborto legal”, completa.
Com o lema “Criança não é mãe! Gravidez forçada é tortura!”, o ato público convocado pela Flaes integra uma mobilização nacional em defesa dos direitos reprodutivos e contra os retrocessos no Congresso. O movimento reúne coletivos feministas, entidades estudantis, organizações de saúde e representantes de conselhos e frentes de direitos humanos.
A frente denuncia que, caso o PDL seja aprovado no Senado, serviços de atendimento a vítimas de violência sexual poderão ser perseguidos, dificultando o acesso à profilaxia, à contracepção de emergência e ao aborto legal. “Não se trata apenas de interromper uma gestação, mas de garantir o cuidado integral às vítimas. O que está em risco é o próprio direito à saúde”, enfatiza a ativista.
Ela lembra que o Conanda, órgão deliberativo que integra o Sistema de Garantia de Direitos, atuou dentro de suas prerrogativas ao publicar a Resolução nº 258. “O Conanda cumpre sua função de zelar pela proteção integral da infância e da adolescência. O ataque à resolução é um ataque ao Estatuto da Criança e do Adolescente”, afirma.
Além do ato de rua, a Flaes promove, em parceria com o Cine Por Elas, uma sessão de cine-debate que exibirá o documentário 22 Semanas, produzido pela Folha de S.Paulo, que reconstrói a história da menina de 10 anos de São Mateus, no norte do Estado, estuprada pelo tio e impedida de realizar o aborto legal no Espírito Santo em 2020.
Sem hospitais aptos a realizar o procedimento acima da 22ª semana, a criança teve seus dados vazados e precisou viajar escondida até Recife para acessar o direito garantido por lei. “É importante revisitar esse caso, porque ele mostra o que acontece quando o Estado se omite. Quando interessa, há mobilização para impedir o acesso a direitos; mas para fortalecer os serviços, garantir equipes capacitadas e estrutura adequada, não há o mesmo empenho”, critica Beatriz. O debate após a exibição vai abordar os efeitos do PDL 3/2025 e a necessidade urgente de ampliar os serviços públicos de aborto legal no Estado.
Apenas três hospitais no Estado realizam o procedimento: o Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes (Hucam), em Vitória, e o Hospital Infantil e Maternidade Alzir Bernardino Alves (Himaba) em Vila Velha, na região metropolitana, e Maternidade São José, em Colatina, noroeste do Estado. Entretanto, nenhum atende casos acima da 22ª semana de gestação.
Na avaliação da Frente pela Legalização e Descriminalização do Aborto do Estado, o avanço de propostas como o PDL 3/2025 expressa a ofensiva de parlamentares ultraconservadores que instrumentalizam a pauta antiaborto para fortalecer suas bases eleitorais. “Vivemos uma ofensiva de parlamentares antidireitos que se dizem pró-vida, mas que, na prática, desumanizam meninas e mulheres vítimas de estupro. Ao atacarem o atendimento em saúde, eles reforçam a violência e ignoram a realidade de milhares de crianças violentadas dentro de casa”, diz trecho da carta pública divulgada pela Flaes.
‘Perpetuação da tortura’
A Flaes aponta que entre o final de 2019 e maio de 2025, o Espírito Santo registrou mais de 4 mil notificações de violência contra crianças e adolescentes, segundo o Painel Epidemiológico do e-SUS/VS. Desse total, 1.082 meninas e 179 meninos foram vítimas de violência sexual, a maioria dentro da própria residência. Em três casos, as vítimas tentaram tirar a própria vida após os abusos.
Somente em 2025, dados preliminares do Painel de Monitoramento de Nascidos Vivos indicam 100 nascimentos de bebês com mães de até 14 anos no Espírito Santo. No Brasil, já são mais de 7,4 mil registros neste ano. Em 2024, foram 188 casos no Estado (de um total de 11,9 mil no país), e em 2023, 186 (de 13,9 mil nacionalmente).
Mesmo quando há previsão legal, as barreiras institucionais seguem impedindo o acesso ao aborto legal, afirma o documento, que aponta como isso empurra meninas e mulheres a situações de risco. As complicações de abortos inseguros ainda estão entre as principais causas de morte materna no Brasil, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).
A organização conclama os parlamentares a assumirem sua responsabilidade com a proteção de crianças e adolescentes. “Seguimos cobrando que o Estado garanta às meninas e adolescentes seus direitos plenos, sem violência e sem imposição moral. O direito à saúde é inegociável, e o cuidado não pode ser criminalizado.” Para Beatriz, “não se trata de ideologia, mas de responsabilidade social”. Com a pressão da sociedade civil, os movimentos esperam que o Senado escute o apelo popular e barre o PDL, prossegue. “Criança não é mãe e negar o atendimento em saúde é perpetuar a tortura”, ressalta.

