Grupos Warao fugiram de difíceis situações na Venezuela e migraram para o Brasil buscando melhores condições de vida
Quando chegamos ao Centro de Convivência do Idoso em Serra Sede, um caminhão termina de descarregar os últimos pertences na calçada, sendo que parte deles ali permanecem por horas, ao olhar de estranhamento dos moradores que transitam pela rua. Fogão, botijões de gás, roupas, panelas, bolsas, mochilas e instrumentos musicais pertencem a um grupo de 40 indígenas Warao que haviam sido acolhidos pelos serviços públicos depois de deixarem uma casa que alugaram em Laranjeiras, por falta de recursos.
Segundo informações dos serviços de acolhimento do município, os Warao que chegaram ao município saíram da Venezuela em 2019, passando por vários estados brasileiros, tendo se fixado em João Pessoa (PB) por um tempo e passado por Guarapari antes de chegar à Serra. Ao todo são sete famílias, com 14 adultos, incluindo uma grávida, e um grande grupo de 26 crianças, que se divertiam usando os equipamentos da academia popular para idosos como um playground enquanto passamos por lá.
“A situação dos Warao em cada cidade acaba dependendo das respostas do poder público, da existência ou não de um atendimento e da adequação desse atendimento, no sentido de respeitar as especificidades culturais dessa população”, comentou no podcast Observantropologia a doutora em Antropologia pelo Museu Nacional (UFRJ) Marlise Rosa, estudiosa da questão da mobilidade dos Warao no Brasil. “Mas em termos gerais, se tratam de situações de muita vulnerabilidade e precarização da vida, que acabam resultando em processos de adoecimento e também em mortes”, alerta.
O recebimento de um grupo tão numeroso é algo raro no Espírito Santo, mais ainda se tratando de populações indígenas com suas especificidades. A emergência da necessidade de proteção dos direitos humanos desse grupo recém-chegado acende um alerta para a necessidade de maior atenção ao tema no Estado.
O historiador e professor da Universidade de Vila Velha (UVV) Rafael Simões, coordenador do Núcleo de Apoio aos Refugiados no Espírito Santo (Nuares), observa que o estado não é uma grande porta de entrada de refugiados no Brasil, porém o número de pessoas nesta situação vem crescendo nos últimos anos, principalmente com a chegada de venezuelanos vindos de outras regiões brasileiras, e em menor quantidade de pessoas nascidas no Haiti, além de outras da Nigéria, República Democrática do Congo, Camarões, Síria e Ucrânia
“O Espírito Santo, na verdade, não está preparado para essa questão. O que temos apontado no Nuares ao longo dos anos é que não temos uma política pública de recepção e integração dos refugiados. Quando eles chegam, se mobilizam órgãos públicos em torno daquele caso concreto, específico, mas não temos uma organização, seja definida em lei, seja por uma combinação administrativa, que a nosso entender deveria ser capitaneada pelo governo do Estado em articulação com as prefeituras da Grande Vitória e das grandes cidades do interior, ao menos”, avalia Rafael Simões, apontando a necessidade de contar com estrutura que combine equipe multidisciplinar de profissionais que possam ter um olhar amplo para a complexidade de casos como dos indígenas venezuelanos.
A Setades organizou no último dia 17 um evento online direcionado a conselheiros tutelares e às equipes de assistência social dos 78 municípios do Espírito Santo para discutir as especificidades do tema, contando com presença de Lyvia Rodrigues Barbosa, da Agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para Refugiados (Acnur) e do defensor público estadual Victor Oliveira Ribeiro.
Principais dificuldades
Além das dificuldades originadas pela condição de vulnerabilidade em seus processos migratórios, os Warao e outros grupos ainda refugiados também enfrentam muitas vezes violência institucional, como aponta Marlise Rosa sobre situações em que o próprio Estado perpetua certos graus de violência contra eles.
A falta de sistematização é um problema, pois a cada local de chegada, muitas vezes os Warao passam pelo mesmo processo. Em conversa com a reportagem, um dos integrantes do grupo que está na Serra manifestou sua insatisfação com as constantes promessas de ajuda que encontram em cada lugar, que não são realizadas. Por isso, continuam seu deslocamento pelo país.
Os desafios não são fáceis na acolhida de refugiados e ainda mais complexos com populações indígenas por conta das diversas especificidades, reconhecidas pelas legislações nacionais e internacionais.
No caso dos Warao, é comum a migração em grandes grupos, como ao que chegou ao Espírito Santo. A questão linguística também é um problema imediato. Nativos de língua homônima à etnia, a maioria domina muito pouco o espanhol e o português. Isso implica dificuldades tanto nos momentos de acolhida pelos serviços básicos de atenção, como na possibilidade de conseguir empregos ou outras fontes de renda.
Os refugiados que estão na Serra comentaram não ser letrados, o que os dificulta também no acesso a diversas questões. Um deles, que havia comprado um chip para celular, buscava ajuda para colocar crédito, pois isso demanda número de CPF, que ele não tinha.
Além disso, Marilse Rosa observa como uma das questões mais delicadas e problemáticas, a atuação dos órgãos brasileiros de proteção à infância. Segundo levantamento da Acnur e do Ministério Público Federal, a maioria das famílias Warao estabelecidas na região sobrevive com pedido de doações nas ruas e sinais. Outra parte busca a venda de artesanato, comércio e trabalhos braçais.
Em muitos casos, nas atividades de pedir, para as quais geralmente carregam placas em português explicando de onde vêm e motivo de precisarem de doações, levam as crianças junto. “Por estarem com os pais no momento da prática de pedir dinheiro ou por conta dos espaços em que eles acabam se instalando, há o entendimento de que essas crianças estariam em risco ou em situação de vulnerabilidade social, quando na verdade são as famílias que assim estão. Então, por isso é importante que as ações por parte do poder público contemplem as famílias em sua totalidade e evitem ações de separação dos núcleos familiares”, aponta a antropóloga.
Para Angela Facundo, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é preciso também avançar para além do momento de chegada dos migrantes. “Temos muitas políticas de entrada e poucas de permanência”, aponta ao podcast Observantropologia. Isso implica pensar que migrantes e refugiados nem sempre estão apenas de passagem, pois muitas vezes precisam de um lugar para estar de forma estável, ao mesmo tempo em que necessitam de políticas para dialogar e interagir melhor com a sociedade brasileira, da qual passam a fazer parte. São muitas variáveis que influem nisso, desde a região do país e da cidade em que estão até os aspectos culturais dos refugiados.
A professora considera que embora o Brasil tenha avançado legalmente com a Lei 9474/97, que é considerada progressista em relação à questão dos refugiados, ainda há muitas dificuldades concretas na hora de se realizar as políticas previstas. Ela explica que o Brasil vem construindo medidas de proteção conforme aparecem as necessidades de grupos específicos, gerando aprendizados e tentativas mais organizadas de conseguir implementar políticas de acolhida que possam ir além de apenas permissão de ingresso dessas populações.
Ela critica também a estrutura administrativa do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), órgão colegiado ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, considerada insuficiente para atender à crescente demanda de refugiados no Brasil.
Segundo a professora, a chegada de pessoas e grupos em situação de necessidade de refúgio têm despertado várias ações de solidariedade, com apoio de pessoas e organizações sociais. Mas por outro lado, também aumentam manifestações xenofóbicas e racistas, que têm tido mais virulência, sobretudo contra as populações racializadas, como negros e indígenas.
Quem são os Warao e o que buscam
O povo Warao é composto por quase 50 mil pessoas originárias da região do delta do Rio Orinoco, no nordeste da Venezuela, onde habitam há pelo menos oito mil anos. São a segunda etnia mais populosa do país.
Eles têm configurado quase 70% dos cerca de cinco mil indígenas venezuelanos que vivem no Brasil desde 2014, com intensificação da migração a partir de 2016, diante do aprofundamento da crise política, econômica e humanitária venezuelana. No novo país, a maioria possui condição de solicitante de refúgio e já foi vacinada contra Covid-19.
Tendo como principal ponto de entrada a cidade fronteiriça de Pacaraima (RR), grupos Warao que haviam se estabelecido pela região Norte têm feito nos últimos três anos longos deslocamentos pelo Brasil, estando hoje presentes em dezenas de municípios nas cinco regiões do país. Apesar disso, não são grupos tradicionalmente nômades, como muitas vezes se supõe por parte de brasileiros. Na verdade, seus deslocamentos se dão na busca de melhores condições de vida diante dos impactos causados por atores externos em seus territórios tradicionais.
“Como me explicou um dos meus interlocutores, eles buscam uma solução para o problema Warao. E o que configura esse problema é a falta de alimentação, de atendimento, de condições dignas de moradia, ou seja, essa mobilidade, esse processo de deslocamento, é decorrente da busca por condições dignas de sobrevivência”, explicou Marlise no podcast.
Para ela, isso coloca o País diante de uma questão curiosa de perspectivas. “Enquanto para os agentes do estado do Brasil essa mobilidade se configura como um problema, para os Warao ela se apresenta como uma provável solução”. Porém, aponta, como esses processos de deslocamento geralmente se dão em condições precárias, apenas com o dinheiro para a passagem, isso os coloca muitas vezes em condições de vulnerabilidade, com alimentação deficiente, se instalando em locais com pouca estrutura e se debatendo com situações delicadas.
Os projetos desenvolvimentistas na Venezuela, porém, levam a tensões que provocaram expulsão e fuga dos territórios tradicionais. O primeiro grande fluxo migratório se deu a partir da década de 1960, com a implantação de projetos agrícolas de não-indígenas na região, conhecida pela grande fertilidade do solo e biodiversidade. Naquele momento, os Warao migram sobretudo para as grandes cidades venezuelanas. Atualmente, diante da difícil condição interna em todo o Brasil, país vizinhos têm sido uma das principais alternativas na busca de um novo local.
A onda mais recente tem entre suas causas as tensões provocadas por diversos projetos privados e estatais em torno do petróleo e da mineração. Um grande plano de mineração chamado Arco Mineiro do Orinoco, que cobre uma extensa região de vários estados venezuelanos no entorno do rio para exploração de diversos minerais como ouro, bauxita, diamantes e coltan foi anunciado em 2011 e implantado a partir de 2016.
Além da mineração ilegal, à margem do controle e regulação do Estado, empresas nacionais e internacionais exploram minérios com legislação mais flexível. Ao delta do rio, fonte de vida para os Waraos, chega a poluição e contaminação lançada por esses projetos, afetando as condições de sobrevivência, agravadas ainda pela crise de desabastecimento de produtos básicos nos últimos anos. Na Serra nos relatam que em sua terra a situação é de fome e falta de recursos e que ainda mantém contato com parentes que seguem no território e enfrentam condições difíceis.
Políticas públicas e solidariedade
É muito dura essa história de um povo que luta para sobreviver mesmo diante de tantos ataques do rolo compressor do capitalismo. Precisa inventar e reinventar suas estratégias para seguir adiante em locais inicialmente hostis à sua presença.
Nesse Brasil de extremos em que estamos vivendo, em que a cultura do ódio é disparada contra tudo o que é considerado diferente, olhar com atenção, respeito e solidariedade, estender as mãos a quem vem de situações mais difíceis, é um imperativo que devemos ter como pessoas, grupos sociais e como Estado, por meio de políticas públicas sólidas e sensíveis às especificidades da questão.
É importante conhecer e também aprender com ensinamentos e que os povos nos trazem de outras regiões. Apesar de tanta dificuldade, os Warao, como os outros povos migrantes, são sujeitos de si que levam consigo conhecimentos diversos. Mesmo na dureza, há afetos e sorrisos, como os registrados na bela foto de capa da reportagem. E na academia que vira parquinho, as crianças também brincam e sorriem. A vida continua. Mas pode ser melhor.
Nessa e em outras questões, nos resta decidir e lutar por qual Brasil queremos: o que ataca ou o que acolhe as diferenças.