Medida foi promulgada pelo presidente da Assembleia após omissão do governador

O presidente da Assembleia Legislativa, Marcelo Santos (União), promulgou a Lei nº 12.479/2025, após o governador Renato Casagrande (PSB) se omitir e perder o prazo para sanção ou veto. Publicada no Diário Oficial da Casa na última quinta-feira (17), a norma permite que pais ou responsáveis vetem a participação de seus filhos em atividades pedagógicas que envolvam identidade de gênero, orientação sexual, diversidade e temas relacionados. A proposta é originária do Projeto de Lei 482/2023, de autoria do deputado Alcântaro Filho (Republicanos) – e foi aprovada em plenário no mês passado.
Mesmo com parecer técnico da Procuradoria da Assembleia apontando inconstitucionalidade formal e material, o projeto passou com maioria simples e entrou em vigor sem interferência do Executivo. A norma obriga escolas públicas e privadas do Estado a informarem previamente os pais ou responsáveis sobre essas atividades, cabendo às famílias decidir, por escrito, se autorizam ou não a participação dos filhos.
Na justificativa do projeto de lei que originou a nova lei estadual, Alcântaro sustenta que atividades pedagógicas sobre identidade de gênero e orientação sexual teriam caráter “doutrinário” e poderiam “moldar valores e visões de mundo” das crianças, o que justificaria o direito dos pais de vetar o conteúdo.
Para a pesquisadora Erineusa Duarte, coordenadora do Núcleo Interinstitucional de Pesquisa em Gênero e Sexualidades da Ufes (Nupeges), a lei representa uma manobra ideológica com efeito moralista e inócuo do ponto de vista jurídico. “Doutrinação é você não permitir que as pessoas conheçam o debate”, afirma. Para ela, a lei não tem validade constitucional e deve ser judicializada, como ocorreu em outras tentativas semelhantes.

“O STF [Supremo Tribunal Federal] já decidiu, com base no Plano Nacional de Educação, que as escolas têm a obrigação de erradicar todas as formas de discriminação. Isso inclui a discriminação de gênero e orientação sexual”, afirma. “Eles sabem que a lei é inconstitucional, mas seguem criando pânico moral nas escolas e desperdiçando dinheiro público”, reitera.
A pesquisadora avalia que a proposta retoma a agenda do movimento “Escola Sem Partido”, que desde 2015 tenta banir discussões sobre gênero e diversidade das salas de aula, e serve como munição para campanhas eleitorais de parlamentares conservadores. “Querem mostrar para sua base que fizeram a lei, mesmo sabendo que ela pode cair. E muitos cidadãos, sem acompanhar os trâmites legislativos e jurídicos, acreditam que isso é efetivo”.
Ao aprovar uma medida sabidamente inconstitucional, a Assembleia Legislativa faz uso da estrutura pública para mobilizar uma agenda política, destaca Erineusa. “Eles gastam o nosso dinheiro com uma legislação que não tem amparo na Constituição Federal. Isso serve como cortina de fumaça para outras crises nacionais, como as investigações que envolvem o ex-presidente Bolsonaro e as tensões sobre temas econômicos”, afirma.
Erineusa afirma que, inclusive, elaborou um caderno pedagógico sobre gênero e sexualidade a pedido da própria Secretaria de Estado da Educação (Sedu), dentro do eixo de temas transversais do currículo escolar capixaba, em 2023. “A temática da sexualidade e da identidade de gênero não está fora do currículo. Ela é reconhecida institucionalmente”, enfatiza.
Em 2017, ela lembra que um projeto de conteúdo semelhante, conhecido como “Escola Livre”, acabou arquivado após ação do Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Espírito Santo (Sindiupes) e núcleos de pesquisa da Universidade Federal do Estado (Ufes), incluindo o Nupeges. “Essa lei vai e volta, mas segue sem base legal. Enquanto isso, a estrutura política é usada para criar mais pânico moral em torno do tema e intimidar os professores”, pontua.
Em 2021, o então secretário de Educação, Vitor de Angelo, posicionou-se publicamente contra tentativas de censura no ambiente escolar, após uma professora de inglês de uma escola estadual em Vitória ser ameaçada pelo então vereador Gilvan da Federal (Patriota) por ter aplicado uma atividade com conteúdo que abordava a questão LGBTQIA+, e o parlamentar comparecer à unidade com tom intimidatório, segundo Boletim de Ocorrência (BO) registrado pela professora. Um ato em apoio à professora foi realizado no dia seguinte em frente à Escola Estadual de Ensino Médio Renato Pacheco, em bairro Jardim Camburi. Na ocasião, a Sedu divulgou nota de repúdio, afirmou que acionaria o Ministério Público para apuração do caso, e declarou compromisso com a liberdade de ensino.
Desta vez, no entanto, a Sedu informou, em nota enviada a Século Diário, que cumprirá a Lei nº 12.479/2025, “mesmo não tendo concordado com a proposição legislativa, conforme manifestação oficial enviada pela Sedu durante a tramitação do projeto”. A secretaria diz que “reitera seu compromisso institucional com o cumprimento das normas legais vigentes e explicou que a manifestação contrária, à época, “destacou a importância do respeito às diretrizes da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e do Currículo do Espírito Santo, que orientam uma formação integral e cidadã, e reforçou a defesa da autonomia pedagógica das escolas e profissionais da educação”.
Diante da promulgação da nova legislação, a Sedu afirma que “seguirá as determinações legais, adotando as providências necessárias para regulamentação e cumprimento da norma no âmbito da Rede Pública Estadual de Ensino, conforme definido pela legislação”.
Municípios
Em Guarapari, também foi promulgada a Lei nº 5.036/2025, que proíbe discussões sobre identidade de gênero e orientação sexual nas escolas públicas e privadas do município. A medida, originária de projeto de autoria do vereador Luciano Costa (PP), foi contestada, porém, pelo Ministério Público do Espírito Santo (MPES) após representação da Associação Diversidade, Resistência e Cultura (ADRC), que considerou a norma inconstitucional, por tratar de tema cuja legislação é de competência exclusiva da União, como já reconhecido pelo STF.
O caso foi assumido diretamente pelo Procuradoria-Geral de Justiça, que optou por buscar uma solução extrajudicial por meio do Núcleo Permanente de Incentivo à Autocomposição (Nupa), que promove reuniões com representantes da Câmara para buscar uma alternativa consensual.
Em Colatina, no noroeste do Estado, um projeto praticamente idêntico foi apresentado em fevereiro deste ano pelo vereador Vitor Lousada (PL) e recebeu parecer jurídico do procurador jurídico Bruno Vello Ramos pela inconstitucionalidade, por invadir competência da União ao tratar de diretrizes da educação nacional. A proposta atualmente está em análise nas comissões temáticas da Câmara, aguardando pareceres técnicos antes de ser colocado em plenário.