Defesa de major capixaba apresenta alegações finais; PGR contesta: “atuação tendenciosa”

“Angelo era um elemento técnico, não fazia trabalho político”. A afirmação consta nas alegações finais da defesa do major da reserva do Exército Angelo Martins Denicoli, residente em Colatina, no noroeste do Espírito Santo, acusado de participação na trama que resultou na tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023. O julgamento dos sete réus do Núcleo 4, do qual ele faz parte, na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) foi marcado para os próximos dias 14, 15, 21 e 22.
Segundo o inquérito da Polícia Federal (PF), Angelo, que na época não ocupava cargo público na Presidência da República, fazia parte da ala “mais radical” ligada ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), atuando diretamente na produção de estudos para disseminar desinformação sobre as urnas eletrônicas.
As investigações indicaram que Denicoli participava de reuniões e grupos de WhatsApp sobre o tema, e ajudou a alimentar o influenciador digital argentino Fernando Cerimedo com informações falsas sobre o pleito eleitoral de 2022. Cerimedo realizou uma live no dia 4 de novembro de 2022, na qual apresentou informações de um suposto dossiê. O documento apócrifo dizia que cinco modelos de urnas fabricados antes de 2020 não teriam sido submetidos a procedimentos de auditoria e fiscalização e teriam gerado mais votos para Lula do que para Bolsonaro.
Em caráter preliminar, a defesa do major argumentou, novamente, que nem o Pleno do STF e tampouco a Primeira Turma teriam competência para julgar o caso de Denicoli, tendo em vista que ele não ocupava cargo com prerrogativa de foro na época. Essa questão, porém, já foi refutada pelo ministro-relator, Alexandre de Moraes. O advogado alegou ainda que a Procuradoria-Geral da República (PGR) apresentou fatos novos em sua manifestação final, o que configuraria cerceamento de defesa.
Uma das novas provas apresentadas pela PGR diz respeito a um inquérito que aponta a participação de Denicoli em um grupo de WhatsApp intitulado “Eleições 2022@”. Foram encontradas interações do major da reserva no grupo. “Podemos fazer uma call em 15 min? Quem pode? Assunto: melhor uso do documento”, disse ele em uma das mensagens, conforme os documentos da investigação.
Em outro documento encontrado pelo Polícia Federal, intitulado “Bom dia Presidente.docx”, o então diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem – eleito deputado federal pelo Partido Liberal (PL) do Rio de Janeiro em 2022 – afirmou que contava com a atuação de Denicoli em uma “empreitada”.
Entretanto, segundo a defesa do major, “dentro da enxurrada de prova digital existente nos autos, aproximadamente 70 TB, não há nenhuma troca de mensagens ou documentos entre Angelo, Alexandre Ramagem, Jair Messias Bolsonaro e até com o próprio réu colaborador Mauro Cid. Telefones e computadores foram apreendidos, nuvens foram acessadas e mesmo assim não há nada que indique que Angelo teria realizado algum trabalho de desinformação acerca do processo eleitoral brasileiro”.
Outro elemento de prova da suposta relação de Angelo com a trama golpista seria o link de uma pasta do Google Drive na qual Fernando Cerimedo acessava documentos com informações falsas. Um desses documentos teria o major capixaba como o usuário proprietário. A defesa, porém, elenca depoimentos de testemunhas que afirmam que a pasta tinha acesso livro, sendo divulgada pelo próprio Cerimedo nas redes sociais, e que Denicoli apenas copiou um dos documentos.
Há também uma mensagem em que o tenente-coronel Mauro Cid, oficial que se tornou o delator da trama golpista, pede a Angelo o número de telefone de Cerimedo. A argumentação da defesa é de que o major apenas se prontificou a pedir o número a outras pessoas e que nem sequer possuía o contato na sua agenda, como se depreende da troca de mensagens nos autos. A defesa questiona ainda o fato de o próprio influenciador não ter sido denunciado pela PGR.
Outro ponto em questão foi a participação de Angelo Denicoli em reuniões com o Instituto Voto Legal (IVL), que, a pedido do Partido Liberal (PL), elaborou em 2022 um parecer utilizado para questionar o resultado das eleições. A defesa utiliza depoimentos de Mauro Cid e do presidente do PL, Valdemar da Costa Neto, para sustentar que Denicoli cumpriu apenas uma função técnica e sem nenhuma relevância nos encontros.
Em sua peça final sobre o caso, o procurador-geral Paulo Gonet descartou a tese do major capixaba. “A defesa de Ângelo Denicolo, diante dessas declarações, procurou definir o papel do acusado como meramente ‘técnico’ ou ‘estatístico’. As provas reunidas nos autos, contudo, revelaram o oposto – uma atuação tendenciosa, sem qualquer neutralidade, no processamento dos dados reunidos pelo grupo. O objetivo do acusado era o de conferir aparência técnica às teses sabidamente infundadas de fraude eleitoral”, escreveu.
“Os elementos reunidos demonstram o protagonismo assumido por Ângelo Denicoli nas ações de desinformação da organização criminosa. Comprovou-se que, desde o início do iter criminis, o acusado acompanhava a fabricação das narrativas falsas disseminadas pelo grupo. Após a derrota eleitoral, intensificou seus trabalhos e atuou na divulgação, por diferentes frentes, de tese sabidamente inconsistente de fraude eleitoral, a fim de potencializar a instabilidade social, essencial à concretização da quebra institucional. A relevância de suas contribuições torna imperativa a sua responsabilização pelos crimes que lhe são imputados na denúncia”, defendeu o procurador.
Pedido de condenação
Além do major capixaba, compõem o Núcleo 4 o capitão reformado do Exército, Ailton Gonçalves Moraes Barros; o engenheiro e presidente do Instituto Voto Legal, Carlos César Moretzsohn Rocha; o subtenente do Exército, Giancarlo Gomes Rodrigues; o tenente-coronel do Exército, Guilherme Marques de Almeida; e o policial federal e ex-membro da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Marcelo Araújo Bormevet.
O procurador-geral da República pediu a condenação de todos os réus pelos crimes de organização criminosa armada; tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito; golpe de Estado; dano qualificado pela violência e grave ameaça, contra o patrimônio da União, e com considerável prejuízo para a vítima; e deterioração de patrimônio tombado. Na visão de Gonet, as ações de desinformação foram determinantes para os eventos que culminaram no 8 de janeiro de 2023.
Em julgamento realizado neste mês, a Primeira Turma do STF decidiu condenar, por quatro votos a um, os oito réus do Núcleo 1, entre eles Jair Bolsonaro, que pegou 27 anos de prisão. Ainda cabe recurso da decisão.
Os outros grupos do processo são o “Núcleo 2 – Gerenciamento de ações” e “Núcleo 3 – Ações coercitivas”.