Prefeitura de Cariacica notificou moradores para deixar área prevista para polo industrial
Apesar de terem feito pedido de legalização fundiária, 138 moradores dos bairros Padre Mathias, Vila Cajueiro e Pica Pau, em Cariacica, foram notificados pela gestão de Euclério Sampaio (MDB), para que deixem suas propriedades. A Defensoria Pública do Espírito Santo (DPES), no entanto, recomendou a não remoção das famílias.
A notificação da prefeitura, conforme consta na recomendação da DPES, foi feita no último dia 5 de junho. A remoção é para colocar em prática o projeto da gestão municipal de criar um polo industrial no antigo hospital Pedro Fontes, em Padre Mathias. Em dezembro de 2023, a área, que pertencia ao Governo do Estado, foi municipalizada por meio da aprovação do Projeto de Lei nº 1021/2023.

O Hospital Pedro Fontes foi criado em 1937 para isolar pacientes com hanseníase, doença também conhecida como lepra, normalmente retirados de maneira violenta do convívio familiar e social. Os filhos dos internos, por sua vez, eram encaminhados para o Educandário Alzira Bley, também em Cariacica, criado em 1940. O leprosário, chamado de Colônia de Itanhenga, nasceu no contexto da política de isolamento e internação compulsórios de pacientes com hanseníase no primeiro governo do presidente Getúlio Vargas.
Moradores que preferiram não se identificar, por temer represálias, relatam que a prefeitura deu um prazo até dezembro de 2024 para que entrassem com ação de legalização fundiária. Contudo, os que não tinham boas condições financeiras não puderam fazer o pedido, uma vez que o custo era muito alto, incluindo ainda a contratação de um topógrafo para fazer a planta.
O pedido de legalização fundiária, explicam, era para garantir a permanência na propriedade. Entretanto, ainda assim, as pessoas foram notificadas pela prefeitura para sair. As que não fizeram o pedido, ainda não receberam a notificação. “É algo feito sem amparo legal, não estava tramitando na Justiça, não houve uma determinação judicial. A prefeitura simplesmente pegou os dados das pessoas que fizeram o pedido, fez uma notificação de duas páginas e deu um prazo de 30 dias para saírem”, denunciam.
Os moradores afirmam que, na região, grande parte dos moradores é antiga, como ex-internos encaminhados compulsoriamente para o hospital e ex-funcionários do equipamento, que ganharam as casas do Governo do Estado. A medida, na ocasião, tinha objetivo de incentivar e atrair trabalhadores, já que era difícil achar mão de obra, pois as pessoas não queriam trabalhar em um local que lidava com pacientes com hanseníase. Contudo, afirmam, o prefeito tem argumentado que a área foi invadida.
Eles destacam, também, que no próprio terreno do hospital há diversas casas. “No mínimo vão remover essas casas, já que ali será o polo industrial”, apontam. O equipamento, inclusive, tem sido alvo de depredação, o que tem indignado principalmente familiares daqueles que foram internados compulsoriamente por terem contraído hanseníase. Eles temem o apagamento da memória local e aumento da violência, e se queixam de que não há diálogo por parte da Prefeitura de Cariacica sobre a construção do polo industrial.
Filha de ex-internos do Hospital Pedro Fontes, Aureni de Souza Castro relata que o equipamento está abandonado, sem garantia de segurança por parte da prefeitura. Por isso, está sendo depredado. De acordo com ela, portas foram arrancadas, bem como janelas, assim como nos pavilhões que abrigavam os hansenianos. A situação faz com que os moradores temam que ladrões possam se abrigar no imóvel.
‘Violação dos princípios da legalidade’
A recomendação da Defensoria levou em consideração o fato de a região ter moradias existentes, sendo a maioria delas consolidadas há décadas; núcleos urbanos consolidados, reconhecidos pelo poder público e dotados de equipamentos de infraestrutura, parcialmente; centenas de moradores em situação de vulnerabilidade social; ordem de desocupação desacompanhada de informações específicas quanto ao devido processo administrativo; ausência de devido processo legal administrativo prévio, com contraditório e ampla defesa; ausência de demonstração de excepcionalidade, urgência, subsidiariedade, proporcionalidade; e de encaminhamentos habitacionais e assistenciais aos moradores removidos.
A DPES afirma que o Núcleo de Defesa Agrária e Moradia (Nudam) constatou que a região conta com 300 famílias que “residem, sem alternativas habitacionais, sendo a maioria em situação de hipossuficiência econômica e social”.
Consta, ainda, que em atendimento feito juntos aos moradores, foi informado que “a ocupação nos referidos bairros remonta há mais de 50 anos, destacando que um dos notificados reside no local há cerca de 50 anos. Relataram, ainda, que os moradores possuem acesso regular a serviços públicos essenciais, como abastecimento de água, energia elétrica e coleta de lixo. As ruas, em sua maioria, não são pavimentadas, havendo apenas um trecho de aproximadamente 1 km com blocos em trechos distintos”.
A recomendação confirma que foram notificados somente os moradores que haviam formalizado pedidos de regularização fundiária, “possivelmente indeferidos, sendo posteriormente notificados quanto à remoção administrativa, com prazo de até 30 dias corridos. Com efeito, o município não apresentou respostas aos moradores que solicitaram administrativamente a regularização, não havendo registro de pedidos deferidos ou indeferidos, tampouco a exposição dos respectivos fundamentos, tendo sido enviada apenas a notificação extrajudicial”.
De acordo com a DPES, “a realização de atos de remoção sem a abertura de prévio procedimento administrativo viola os princípios da legalidade dos atos administrativos (art. 37, caput da CF/88) e do devido processo legal (art. 5o, LIV, da CF/88), bem como os direitos de acesso à informação (art. 5º, XIV, da CF/88), à ampla defesa e ao contraditório (art. 5º, LV, da CF/88). Por sua vez, a ausência de adoção de medidas de proteção dos direitos humanos viola o fundamento da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88), os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º, da CF/88), o princípio da prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II), o direito fundamental à moradia adequada (art. 6º, da CF/88)”.
O texto prossegue dizendo que “adicionalmente, registra-se a impossibilidade de medida administrativa autoexecutória, que tenha por objetivo promover a remoção forçada, se não demonstrada a excepcionalidade, como a absoluta urgência e necessidade por razões de riscos iminentes à vida dos moradores e, mormente, se desacompanhada do devido processo legal administrativo”.
A DPES destaca que “a Resolução nº 17, de 6 de agosto de 2021, do CNDH [Conselho Nacional de Direitos Humanos], reconhece que as medidas administrativas de remoção forçada violam os direitos humanos e, desta forma, apenas podem ser praticadas de forma extremamente excepcional, devendo, em todos os casos, ser precedidas do regular processo administrativo e da adoção de medidas de garantia dos direitos humanos”.
Além disso, afirma ser “imprescindível destacar que o comando final da ADPF 828 consolidou, expressamente, a necessidade de haver devido processo administrativo prévio, prazo para desocupação voluntária e encaminhamentos aos moradores em situação de vulnerabilidade, também em caso de remoções administrativas”.
A DPES aponta que “qualquer pretensão de remoção administrativa forçada dos moradores, deve, para ser juridicamente válida, além de receber o devido tratamento administrativo até que se chegue à eventual decisão de remoção, passar pelo crivo do contraditório judicial, se não for absolutamente excecional, sobretudo se se tratar de remoção involuntária de moradias. Ainda que excepcional, mantém-se a obrigatoriedade do devido processo administrativo, do prazo para desocupação, destacadamente para que, além da integridade física e psicológica dos moradores, os pertences também sejam preservados, e dos encaminhamentos habitacionais. Registra-se, ainda, que a decisão administrativa deve levar em consideração não só aspectos eminentemente técnico-administrativos, mas os impactos sociais gerados”.
Patrimônio histórico
Em 2021, a Prefeitura de Cariacica instituiu o tombamento do Sítio Arqueológico Pedro Fontes, compreendendo a área do cemitério São Francisco, capela e entorno, processo iniciado na gestão do então prefeito Geraldo Luiza Junior, o Juninho, e finalizado no primeiro mandato de Euclério. Para que isso acontecesse, o Governo do Estado enviou para a Assembleia Legislativa um projeto de lei de doação da área onde se situam o cemitério e a capela, aprovado em 2020.

Uma delas estabelece que o município restaure a capela até dois anos após a sanção da lei. A outra, que seja asfaltada a estrada que dá acesso ao local. A última, que seja feita exumação dos cadáveres na entrada do cemitério, em diálogo com as famílias dos mortos, para ajustes estéticos no local. Contudo, os moradores afirmam que nada disso foi feito.
Além disso, o município de Cariacica tem uma legislação própria de tombamento, elaborada com base nos critérios do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Assim, os tombamentos seguem as legislações municipal e nacional.