A concessão de incentivos fiscais do governo estadual pode deflagrar uma nova disputa entre os municípios e o Palácio Anchieta. Desta vez, o motivo do cabo de guerra é a cota-parte das prefeituras no bolo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) que o Estado deixa de arrecadar com os benefícios.
Reza a Constituição Federal que os municípios devem ficar com uma fatia de 25% do bolo do tributo. Este valor deveria ser repassado para o caixa das 78 prefeituras capixabas, independente da renúncia ou não do imposto. Entretanto, o governo estadual não repassa o dinheiro sob alegação de que os valores não chegaram a fazer parte das receitas do Estado.
O assunto é alvo de polêmicas em todo País, tanto que já foi destacado nas discussões sobre a reforma do ICMS, que está sendo analisada pelo Congresso Nacional. Nos últimos meses, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Joaquim Barbosa, concedeu duas liminares a favor de prefeituras do estado de Goiás que tiveram reconhecido o direito ao recebimento da cota-parte do tributo, que foi concedido para empresas a título de incentivo fiscal.
No Espírito Santo, uma comissão especial foi aberta na Assembleia Legislativa para discutir os repasses de ICMS e a compensação às prefeituras. Apesar dos recentes convênios entre o governo do Estado e os municípios para o repasse de verbas, como o recém-aprovado Fundo de Desenvolvimento Municipal (FDM), as prefeituras cobram a reposição de perdas estimadas em R$ 615 milhões nos últimos anos. Somente para este ano, o governo capixaba estima uma renúncia fiscal de R$ 859 milhões, o que obrigaria o repasse de pelo menos R$ 214 milhões aos municípios.
De acordo com o cálculo divulgado em reportagem do jornal A Gazeta, as perdas estimadas de alguns municípios superam a casa das dezenas de milhões de reais. Destacam-se na lista os valores reivindicados pelas prefeituras de Vila Velha (R$ 32,6 milhões), Cariacica (R$ 37,7 milhões), Anchieta (R$ 48,1 milhões), Serra (R$ 72,1 milhões) e Vitória, que lidera a lista de “credores” (R$ 107,3 milhões). No entanto, essas perdas significativas não foram acompanhadas de um discurso mais duro contra os incentivou ou a cobrança das compensações.
Para a mesma publicação, o vice-presidente da Associação dos Municípios Capixabas (Amunes), Leonardo Deptulski (PT), afirmou que os prefeitos são a favor dos incentivos, mas não cobrou o imediato repasse até mesmo por via judicial, como ocorreu no caso das prefeituras goianas. O petista, que é prefeito de Colatina (norte do Estado) – município que acumularia uma perda de pouco mais de R$ 12 milhões –, considerou a sugestão da comissão especial da Assembleia para aprovação de mudanças nos critérios para o repasse para prefeituras.
O presidente da comissão, deputado Rodrigo Coelho (PT), defende ainda que o Estado aproveite a boa situação financeira para ampliar a ajuda repassada às prefeituras. O petista sugere que o governo amortize pelo menos uma parte do total das perdas até como uma forma de mitigar a crise enfrentada pelas prefeituras. Contudo, a postura do deputado – que tem base eleitoral em Cachoeiro de Itapemirim, na região sul do Estado – é bem diferente de outro parlamentar local, o atual presidente da Assembleia, Theodorico Ferraço (DEM).
No final de 2001, Ferraço, então prefeito de Cachoeiro, moveu uma ação judicial e entrou com uma representação na Assembleia Legislativa contra o governador José Ignácio Ferreira. O demista cobrava o repasse da cota-parte do município na operação de transferência de créditos de ICMS entre a Escelsa e a Samarco Mineração, que não teve o montante revelado. Na época, Theodorico afirmou que o município não recebeu qualquer valor (ou compensação), já que a legislação entenderia como arrecadação todo o tributo na esfera do ente federativo – não sendo necessariamente em dinheiro.
Por conta daquela ação, a Assembleia abriu uma investigação contra o então governador. O episódio ficou conhecido como o início das turbulências contra a administração de José Ignácio, que chegou a responder a um processo de impeachment na Casa. Apesar do pedido de cassação do governador ter sido rejeitado pelos deputados, a crise institucional serviu como principal mote de campanha de seu sucessor, Paulo Hartung (PMDB), que deu vazão à atual política de incentivos fiscais.
Entre os anos de 2004 e 2010, o governo Hartung concedeu cerca de R$ 20 bilhões em incentivos à empresa somente dentro do Programa de Incentivo ao Investimento no Estado (Invest-ES). Em nenhuma oportunidade, os municípios viram sequer um centavo do que seria de sua cota-parte, estimada em torno de R$ 5 bilhões. Pelo contrário, esses valores não levam em consideração as renúncias fiscais causadas pelos incentivos dentro dos chamados Contratos de Competitividade (Compete-ES), que estão sendo alvo de contestação na Justiça capixaba e até mesmo no Supremo.
Desde o início deste ano, sete ações populares tramitam na Justiça local contra os acordos dentro do Compete-ES. O autor das ações, o estudante de Direito Sérgio Marinho de Medeiros Neto, questiona a legalidade dos benefícios, que teriam sido concedidos à margem da lei – isto é, sem aprovação de lei específica ou autorização do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz).
Nos processos, o estudante chegou a incluir os 78 municípios capixabas como partes interessadas nas ações, justamente pelo fato de terem direito à cota-parte dos tributos que deixaram de ser recolhidos. No entanto, o juízo da 3ª Vara da Fazenda Pública Estadual determinou a retiradas dos municípios do bojo das ações, que seguem em curso.
Segundo o texto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), aprovado para o próximo ano, o Estado do Espírito Santo vai deixar de arrecadar em função dos atuais acordos do Compete-ES um total de até R$ 2,7 bilhões entre 2014 e 2016. Deste valor, somente o setor atacadista – principal beneficiado no programa e questionado pelo governo paulista no STF – deve causar uma renúncia fiscal de R$ 2,05 bilhões no período. No total, as perdas para os municípios capixabas devem ficar na casa dos R$ 675 milhões, mais do que o valor que é reivindicado hoje.