Vereadora Açucena e entidades pedem medidas para preservação do patrimônio histórico
As intervenções realizadas pela Prefeitura de Cariacica na região de Padre Mathias foram denunciadas ao Ministério Público do Espírito Santo (MPES) pela vereadora Açucena (PT); professores, arqueólogos e pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes); membros do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no Espírito Santo (Iphan-ES) e ex-internos do antigo Hospital Pedro Fontes. A denúncia foi feita durante uma reunião, nessa quarta-feira (15), com a promotora do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente (CAOA) do MPES, Bruna Legora.
No local há uma capela e um cemitério, onde eram enterrados os pacientes do Hospital Pedro Fontes. O equipamento foi criado em 1937 para isolar pacientes com hanseníase, doença também conhecida como lepra, normalmente retirados de maneira violenta do convívio familiar e social. Os filhos dos internos, por sua vez, eram encaminhados para o Educandário Alzira Bley, também em Cariacica, criado em 1940.
O leprosário, também chamado de Colônia de Itanhenga, nasceu no contexto da política de isolamento e internação compulsórios de pacientes com hanseníase no primeiro governo do presidente Getúlio Vargas. Com a descoberta da cura da doença, o fim da internação compulsória aconteceu em 1962, mas há registros de que continuaram a acontecer, em todo o país, até a década de 80.

Foi solicitada ao MPES a adoção de medida que garanta a vigilância da área por parte da gestão de Euclério Sampaio (MDB), para preservar a integridade dos imóveis tombados, que são a capela e o cemitério, e os com tombamento provisório aprovado pelo Conselho Estadual de Cultura, como o Hospital Pedro Fontes. Além disso, é solicitado que se determine providências para que seja adotada a demarcação do território tombado pela municipalidade.
Constam, ainda, nas reivindicações, “fazer cessar as obras que estão sendo realizadas na área do cemitério do hospital, por se tratar de área tombada como sítio arqueológico pelo Iphan pela Prefeitura de Cariacica”; e fiscalização para que obras ou intervenções por parte da prefeitura na área com tombamento provisório “sejam feitas com prévia aprovação do Conselho Estadual de Cultura, conforme determina a legislação”.
Por fim, a promoção do diálogo com o Poder Executivo “no sentido de garantir a criação do Instituto do Patrimônio Cultural do Espírito Santo, com natureza jurídica de autarquia, voltado à preservação dos bens culturais tombados em âmbito estadual, nos moldes da consulta pública feita pela Secretaria Estadual de Cultura no ano de 2012”. Segundo o documento, “trata-se de uma antiga reivindicação de vários estudiosos, trabalhadores da área e entidades, conforme consta de processo em trâmite na Secretaria Estadual de Cultura”.
Na denúncia, é contextualizada a história da região e resgatado o processo de pedido de tombamento do Hospital Pedro Fontes. Consta no documento que um grupo de professores e alunos da Faculdade Brasileira – Univix, em 2008, produziu e protocolou, na Secretaria de Estado da Cultura (Secult), um pedido de tombamento do equipamento. Pouco mais de dois anos depois, a Câmara de Patrimônio Arquitetônico, Bens Móveis e Acervo emitiu parecer favorável ao tombamento, “considerando que o sítio histórico em questão apresenta especial importância no resgate e preservação da memória e história das políticas públicas de saúde e da história do Espírito Santo”. O parecer, então, foi encaminhado para análise do Plenário do Conselho Estadual de Cultura.
Conforme consta na denúncia, o último andamento do processo físico que foi apresentado aos denunciantes pela Secult é de 2018, quando o então gerente de Memória e Patrimônio, Rodrigo Zotelli Queiroz, encaminhou o processo ao Conselho Estadual de Cultura, por solicitação do mesmo. Na denúncia constam, ainda, iniciativas tomadas em outras instâncias. No âmbito municipal, é mencionado o Decreto Municipal nº 274, de 25 de novembro de 2021, que instituiu o “tombamento do Sítio Arqueológico Pedro Fontes, compreendendo a área do Cemitério São Francisco, capela e entorno”.
“O tombamento do referido sítio foi uma importante conquista no sentido de garantir a preservação do patrimônio histórico e evitar que houvesse a degradação do local”, diz o documento, que destaca que, por meio do decreto, ficam preservados monumentos arqueológicos ou pré-históricos, jazidas, cemitérios, a capela, onde está localizada a sepultura do Padre Mathias, sacerdote que dá nome ao cemitério, “e vários outros bens materiais e imateriais relacionados ao sítio histórico”. Além disso, estabeleceu uma determinação, em seu art. 7º, que nos parece ser direcionada ao próprio Executivo Municipal, sobre a necessidade de demarcação do território tombado, no sentido de que fossem captados recursos para restauração da capela.
“Uma vez que as medidas de preservação não foram adotadas, a capela histórica encontra-se em estado crítico de conservação, interditada para cerimônias religiosas ou memoriais. Sua deterioração coloca em risco não apenas o bem cultural em si, mas também a memória coletiva vinculada à comunidade do bairro Padre Mathias e aos ex-pacientes do Hospital Pedro Fontes, situação que exige uma atenção especial dos órgãos de controle”, denunciam.
O artigo 7º do decreto, aponta a documentação, também trata da proibição de abertura de novas covas na região do cemitério. “Essa menção é de extrema importância, já que é nítido o descumprimento de tal determinação. Os enterros continuam ocorrendo no local, na nossa visão sem qualquer tipo de critério, trazendo riscos não só ao patrimônio como também ao meio ambiente”, apontam.
Embargo do Iphan
Os denunciantes recordam, no documento, que em agosto deste ano, o Iphan-ES expediu a nota técnica nº 45/2025 à Prefeitura de Cariacica, embargando as atividades no cemitério Padre Mathias, “até que sejam tomadas as medidas necessárias para resguardar os bens culturais ali existentes”.
A nota, assinada pelo arqueólogo Yuri Batalha de Magalhães, prevê, ainda, a discussão de medidas compensatórias, “haja vista os impactos realizados sobre o sítio arqueológico Cemitério Pedro Fontes, bem como os prováveis impactos sobre o patrimônio arqueológico com a realização das intervenções de expansão do cemitério sem a adoção de medidas preventivas e mitigatórias necessárias, conforme preconiza a Instrução Normativa 01/2015”.

Após visitas feitas ao cemitério no decorrer de 2025, o arqueólogo constatou a depredação da área. Em abril, foi constatada a expansão do cemitério, com covas já utilizadas e outras abertas aguardando novos sepultamentos. O texto informa que, “para abertura de covas, inicialmente a prefeitura faz a terraplanagem do terreno, para a retirada das camadas superficiais do solo, deixando exposto um solo argiloso, de cor alaranjada. Posteriormente, com uma retroescavadeira, são abertas as covas, fechadas posteriormente por funcionários que atuam no cemitério municipal”.
Além disso, “em nossa vistoria, pudemos constatar ainda a existência de muito vestígio material na área, sobretudo histórico, composto de faiança, vidros e cerâmicas antigas, além de conchas de bivalves, possivelmente descartados após o seu consumo pelas populações que habitaram a região ao longo do tempo”.
O arqueólogo constatou também que, “ao que parece, não há um projeto para a execução das novas covas, sendo que além da possibilidade de impacto sobre o patrimônio arqueológico, podemos supor também a possibilidade de danos ambientais. Cumpre indicar que ao sul das novas covas está localizado um trecho de mangue e da baía de Vitória, áreas que devem ter especial atenção por parte do poder público visando a sua preservação”.
Quanto à capela, que se situa dentro da área do sítio arqueológico, constatou-se que “está em péssimo estado de conservação, o que impede seu uso para a realização de missas e demais ritos fúnebres. Em consonância com o próprio tombamento municipal, consideramos que a Prefeitura de Cariacica deveria envidar esforços para restaurar este bem, já que os velórios na atualidade ocorrem em espaço improvisado, com o auxílio de uma tenda montada na entrada do cemitério”.
Na segunda vistoria, no dia 13 de agosto, o Iphan-ES identificou abertura de nova área de expansão no cemitério, de mais de 3 mil metros quadrados. “No local das novas covas, abertas desde a nossa última visita ao local, constatamos sobre o solo a presença de mais vestígios materiais como material conchífero, cerâmico (histórico) e vítreo. Não há a possibilidade de realização de investigação arqueológica nesta e nas outras áreas já mexidas devido ao sepultamento de pessoas no local”, descreve a nota técnica.
Tombamento do Educandário
Em julho deste ano, a advogada Livia Poubel, voluntária do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), solicitou instauração de requerimento de tombamento do Educandário Alzira Bley ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Ela requereu o tombamento do imóvel, do acervo documental e dos bens móveis. Consta, ainda, no pedido, que seja determinada, “caso entenda pertinente, a realização de medidas cautelares de curadoria e inventário técnico do acervo documental ali existente”.

“Hoje, o Educandário ainda guarda acervos originais de valor histórico e probatório imensurável, com documentos que revelam dados sensíveis desses egressos, histórias de separação, adoções e rompimento de laços familiares. Recebi relatos diretos de remanescentes dessa política — que, em conversas profundas e dolorosas, narraram a impossibilidade de acessar registros que poderiam ajudar a reconstruir sua própria identidade, suas origens e, em alguns casos, fundamentar seus direitos à reparação”, disse a advogada no requerimento.
Livia destacou que o cenário atual é de completo abandono. “O local não possui funcionários especializados no cuidado arquivístico, não há estrutura mínima para garantir a guarda segura desse patrimônio, e há notícias recorrentes de invasões e depredações, que colocam tudo em risco iminente de perda irreversível”, denunciou.
A segregação compulsória dos filhos dos pais com hanseníase, apontou a advogada, “é reconhecida por vasta jurisprudência como grave violação de direitos humanos e impõe ao Estado brasileiro o dever de memória, verdade e reparação”. Em meio a essa jurisprudência, Livia destacou a Lei nº 11.520/2007, que concede pensão especial aos submetidos ao isolamento compulsório, a Lei nº 14.689/2023, que estende a reparação compensatória aos filhos separados, e o Decreto nº 7.037/2009, que consagra o direito à memória e à verdade como eixo essencial da Justiça de Transição.

