ICMBio aponta impactos da proposta do governo do Estado para parque em Setiba

“A proposta atual de zoneamento mostra-se incoerente com os objetivos de conservação da unidade, ao prever a implantação de infraestrutura sobre áreas reconhecidamente sensíveis e ocupadas por espécies ameaçadas”. A conclusão integra uma nota técnica do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, em relação ao Plano de Manejo do Parque Estadual Paulo César Vinha (PEPCV), localizado em Setiba, Guarapari. O documento, assinado pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Répteis e Anfíbios (RAN), reforça críticas feitas por ambientalistas e representantes da sociedade civil do Espírito Santo à condução do processo pelo Instituto Estadual de Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos (Iema).
A principal preocupação apontada pelo ICMBio é a ameaça ao habitat de espécies ameaçadas de extinção, como o sapinho-de-setiba (Melanophryniscus setiba) e o lagartinho-de-linhares (Ameivula nativo). Ambas constam na Lista Nacional de Espécies Ameaçadas de Extinção, sendo o primeiro classificado como “Vulnerável” e o outro como “Em Perigo”. Além disso, os dois também figuram nas listas estadual e internacional da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN).

Segundo a nota técnica, embasada pelo parecer do analista ambiental e coordenador substituto do Centro Nacional, Carlos Abrahão, o sapinho-de-setiba é uma espécie microendêmica da Mata Atlântica, conhecida apenas dentro dos limites do parque. Sua área de ocorrência estimada é inferior a 10 km², restrita às formações de restinga seca e às bordas de ambientes arbustivos.
“O PEPCV permanece como a única localidade conhecida no mundo onde o setibinha ocorre, o que ressalta a importância crítica da conservação desta unidade de proteção integral”, alerta. O documento reforça que a possível instalação de infraestrutura em áreas de ocorrência da espécie pode resultar em impactos diretos, como poluição luminosa, ruído e alteração de micro-hábitats fundamentais para sua reprodução.
O lagartinho-de-linhares, que habita preferencialmente dunas, moitas abertas e vegetação pós-praia, tembém é apontado como uma espécie que tem apresentado um declínio populacional acentuado nos últimos anos, com perda de mais de 50% de sua área de ocupação estimada. De acordo com o ICMBio, o PEPCV constitui um dos últimos refúgios bem preservados dentro da área de distribuição da espécie, e é essencial para sua sobrevivência. “A presença de estrutura vegetal adequada favorece comportamentos fundamentais para o lagarto, como reprodução, alimentação e termorregulação”, ressalta a nota técnica.
O documento argumenta, ainda, que a classificação na proposta de algumas áreas como “vegetação de restinga em estado de degradação” não corresponde à realidade ecológica, pois essas funcionam como corredores ecológicos utilizados pela fauna local.
Outras duas espécies ameaçadas também foram citadas pelo ICMBio: a rã Pseudopaludicola restinga, considerada “Em Perigo” no Espírito Santo, e a perereca Boana secedens, classificada como “Em Perigo” pela IUCN. Ambas ocorrem dentro do parque e têm habitat associado a ambientes úmidos, lagoas costeiras e bordas vegetadas, sendo altamente sensíveis a alterações no solo e ao aumento da presença humana.
A recomendação do ICMBio é que qualquer proposta de alteração de zoneamento seja construída com base em dados atualizados, articulada com a equipe técnica do ICMBio/RAN e precedida de amostragem em campo. “Os limites das zonas de infraestrutura só devem ser propostos após a realização de uma amostragem criteriosa nos locais com previsão de modificações, que permitam identificar os limites de distribuição e os micro-habitats essenciais para a sobrevivência das espécies de anfíbios e répteis ameaçados de extinção do PEPCV”, pontua a nota técnica.
Privatização
O Plano de Manejo é um documento técnico produzido por uma equipe multiprofissional, responsável por desenvolver um diagnóstico ambiental e sociocultural da Unidade de Conservação (UC) e definir uso territorial para cada uma das zonas propostas no zoneamento planejado. O que está em vigor hoje no César Vinha foi consolidado em 2007. O governo apresentou a nova proposta ainda em dezembro de 2023 – antes mesmo da conclusão das etapas iniciais da revisão – e as oficinas para elaboração do documento tiveram início apenas em março deste ano, com a participação de representantes da sociedade civil organizada, moradores do entorno e órgãos governamentais.
Nesta semana, ocorreu a etapa específica de debate sobre o zoneamento, e outras fases ainda estão previstas nos próximos meses, com a expectativa de que o novo plano fique pronto no segundo semestre deste ano. Na ocasião, representantes do Movimento em Defesa das Unidades de Conservação (UCs) do Espírito Santo e membros da sociedade civil rejeitaram a proposta apresentada pela consultoria Salt Engenharia e Meio Ambiente, contratada pelo governo estadual para conduzir a revisão.
O ambientalista Hugo Cavaca, que foi o primeiro gerente do PEPCV, participou da oficina e reforçou a preocupação com a tentativa de adaptar o plano de manejo às diretrizes do Programa Estadual de Desenvolvimento Sustentável das Unidades de Conservação (Peduc), que prevê a concessão de parques à iniciativa privada. “Toda a proposta apresentada segue o modelo do Peduc, com implantação de infraestrutura em áreas sensíveis sob o pretexto de que são áreas degradadas, o que não é verdade”, criticou.

Segundo ele, o termo de referência firmado com a consultoria não obriga a realização de estudos primários em campo. “A empresa não precisa validar os dados em loco, nem fazer novas pesquisas. Isso já compromete a qualidade da proposta”, afirmou. Ele também relatou que pesquisadores ligados ao projeto de conservação do sapinho-de-setiba, como o Instituto Boitatá e a Unicamp, têm colaborado com o ICMBio e encaminharam a recomendação de indeferimento com base em dados científicos recentes. “A proposta previa estrutura sobre áreas de reprodução do sapinho. Isso é um absurdo. Quase a totalidade das pessoas presentes foi contrária à proposta”, relatou.
Cavaca afirma que a proposta da consultoria espalha zonas de infraestrutura por várias regiões do parque, incluindo áreas em processo de recuperação ambiental. “Querem transformar zona de recuperação em zona de uso intensivo. Isso é um contrassenso. Se uma área está sendo recuperada, o lógico seria mantê-la assim, e não instalar estacionamento ou centro de visitantes”, pontuou.
Entre as principais críticas, estão também a ausência de um mapa oficial do zoneamento vigente, a antecipação de propostas antes da conclusão das oficinas; e a tentativa de transformar regiões de alta fragilidade ambiental em áreas de visitação intensiva. “Eles apresentaram uma proposta sem considerar as áreas de ocorrência de espécies ameaçadas. Ignoram a função ecológica dessas áreas, alegando que são degradadas, quando são fundamentais para a biodiversidade”, reiterou.
A expectativa é que uma nova oficina seja convocada entre agosto e setembro para rediscutir o zoneamento com base nas críticas apresentadas. Enquanto isso, o movimento ambientalista segue mobilizado. “Estamos com os olhos abertos, vigilantes e resilientes”, enfatizou Hugo Cavaca.

O Peduc, da gestão de Renato Casagrande (PSB) e com Felipe Rigoni (União Brasil) à frente da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos, estabelece a transferência de seis unidades de conservação para exploração econômica pelo empresariado por 35 anos: além do César Vinha; a de Itaúnas, em Conceição da Barra, no norte do Estado; Cachoeira da Fumaça (PECF), em Alegre; e Forno Grande (PEFG) e Mata das Flores (PEMF), em Castelo, ambos no sul do Estado; e Pedra Azul (Pepaz), em Domingos Martins, na região serrana.
Sem a realização de estudos e relatórios de impacto ambiental (EIA/Rima), os primeiros projetos de infraestrutura turística para os Parques Estaduais de Itaúnas e Paulo César Vinha foram apresentados pela consultoria Ernst & Young, contratada sem licitação por R$ 8,6 milhões, e incluem a construção de teleféricos, tirolesas, restaurantes, hospedagens, piscina flutuante e estacionamentos para centenas de veículos.