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Livro reforça relevância do litoral do ES para reprodução de tartarugas marinhas

Guia de Licenciamento do Tamar orienta onde e como instalar empreendimentos em áreas marinhas e costeiras

Uma das principais áreas de reprodução de tartarugas marinhas no Brasil, com crescimento anual regular no número de desovas, o litoral do Espírito Santo é também um dos mais cobiçados por empreendimentos de alto impacto socioambiental do setor porto-petroleiro. As praias capixabas são também muito valorizadas turisticamente, ao mesmo tempo em que sofrem com um crescente processo erosivo e, como em praticamente todo o planeta, experimenta um aumento inquestionável do nível do mar, decorrente do derretimento das geleiras provocado pelo aquecimento global.

Esses são alguns dos elementos que caracterizam a complexidade da área costeira e marinha do Espírito Santo e que precisa ser levada em consideração na gestão da ocupação humana, especialmente no que diz respeito a grandes projetos industriais. O Brasil como um todo engatinha na gestão ambiental costeira e o Espírito Santo não foge a essa regra, infelizmente.

Acreditando que os carismáticos répteis marinhos podem ajudar a qualificar essa gestão, foi lançada a segunda edição do Guia de Licenciamento Tartarugas Marinhas – Diretrizes para avaliação e mitigação de impactos de empreendimentos costeiros e marinhos. A iniciativa é do Centro Tamar/ICMbio, braço governamental do Projeto Tamar, vinculado ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, e que tem suas ações complementadas pela ONG Fundação Projeto Tamar. O lançamento ocorreu nesta sexta-feira, marcando o Dia Mundial das Tartarugas Marinhas, comemorado todo dia 16 de junho.

A ideia é aproveitar o significativo conhecimento científico acumulado – as cinco espécies que ocorrem no Brasil contam com o Plano de Ação para Conservação das Tartarugas Marinhas – para influenciar as decisões sobre onde é possível e como pode ser feita a instalação de obras e empreendimentos na costa brasileira, de forma a conciliar o desenvolvimento econômico com a conservação ambiental.

O livro é ricamente ilustrado e identifica detalhadamente quais os impactos que surgem a partir da implantação e operação de diferentes tipos de obras e empreendimentos, desde cabanas de praia até grandes portos e refinarias. Cada capítulo apresenta alternativas para evitar ou mitigar os potenciais impactos sobre as cinco espécies de tartarugas e o ecossistema marinho do qual dependem.

“Esperamos que fases importantes como a da própria escolha do local proposto para determinado empreendimento leve em consideração o conhecimento trazido nesta obra, para que já no planejamento sejam levados em considerações os possíveis impactos que virão para esses animais, que tanto contribuem para o equilíbrio de todo o ecossistema marinho”, explana o coordenador do Centro Tamar/ICMBio, oceanógrafo Joca Thomé, acrescentando ainda a segurança jurídica e a agilidade como aspectos relevantes, pois muitos projetos acabam sendo considerados inviáveis do ponto de vista ambiental, sendo então recusados ou refeitos, aumentando os custos e, em algumas situações, provocando até judicializações, com desgaste para todos os envolvidos.

O Brasil, destaca o coordenador do Centro Tamar, é o primeiro país com um guia como esse. A publicação está sendo enviada para países de língua portuguesa da África, continente que compartilha o espaço de deslocamento das tartarugas que desovam na costa brasileira. Versões em espanhol e inglês também serão viabilizadas para que outros países africanos e da América do Sul possam utilizar o Guia.

Graças a estratégias de parcerias, como a estabelecida com o Projeto TerraMar, do MMA/GIZ, a obra terá em breve uma versão impressa, facilitando a difusão e manuseio. O Projeto TerraMar é uma iniciativa do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), em parceria com o Ministério Federal do Ambiente, Proteção da Natureza e Segurança Nuclear (BMU), da Alemanha, por meio da Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH.

Projeto Tamar

Joca Thomé conversou com Século Diário sobre como o Guia pode auxiliar a qualificação da gestão costeira para que a variável ambiental seja considerada e sobre as especificidades do litoral capixaba. Confira a entrevista:


De que forma proteger as tartarugas marinhas pode beneficiar a costa de forma mais ampla, do ponto de vista social e ambiental?

O Brasil atual tem falado em mudar o panorama de desenvolvimento ‘a qualquer custo’ pelo desenvolvimento em bases sustentáveis. Considerar a variável ambiental é parte fundamental dessa mudança e isso requer negociação entre diferentes setores, com todos sentados à mesa considerando o que é relevante para todas as agendas.

Quando, dentro da variável ambiental, tratamos de políticas de conservação das espécies do ecossistema marinho-costeiro, destacamos não apenas as tartarugas marinhas, mas aves marinhas, cetáceos, toninhas, baleias e outras espécies, a maioria delas ameaçadas de extinção. Muitos desses animais são transfronteiriços (atravessam fronteiras se alimentando em um continente e se reproduzindo em outro), pré-históricos, respondem por todo um equilíbrio de ecossistemas e prestam os chamados Serviços Ambientais. Ao não considerá-los na ‘conta’, perde-se no curto, médio e longo prazo em qualidade de vida e no comprometimento do patrimônio de toda a biodiversidade do planeta, já que tudo está interligado.

Quais as características mais relevantes que o Guia aponta na costa capixaba que precisam ser consideradas nos licenciamentos?

O Guia não especifica o Espírito Santo com exclusividade, mas toda a costa brasileira. Compreendemos que impactos são sempre sinérgicos e cumulativos. Um porto cujo planejamento tenha sido totalmente equivocado, no litoral do Rio de Janeiro, por exemplo, pode trazer consequências para espécies marinhas que ali transitam e que utilizam a costa capixaba, seja para alimentação ou reprodução.

Mostramos ao público leitor interessado que toda a costa está intrinsecamente conectada. Problemas de erosão costeira, por exemplo, são um clássico desses impactos. Soluções para resolvê-los, se elaboradas de forma isolada, saem repercutindo, em cadeia, ao longo de toda a costa vizinha, a norte e a sul, o famoso efeito em cascata. Ao mesmo tempo, algumas áreas têm mais importância do que outras para as tartarugas marinhas. Com base nos dados de décadas de monitoramento no litoral, as áreas de desova no Brasil foram classificadas em diferentes grupos visando indicar a importância regional relativa dos trechos de praia. As Áreas Prioritárias de Reprodução são aquelas com quantidades significativas de desovas constatadas regularmente, ano após ano.

No Espírito Santo, as Áreas Prioritárias se situam no norte do Estado, da Barra do Riacho, no município de Aracruz, até o município de Conceição da Barra, abrangendo todo o litoral norte, onde ocorre o maior número de ninhos, mais de dois mil por ano.

Em outros municípios também existem áreas de Reprodução Regular com menores números de desovas, como Anchieta no sul do Estado, e Áreas de Reprodução Esporádica com poucas desovas distribuídas ao longo de alguns trechos ainda escuros de praias. O Guia de Licenciamento lista essas áreas com mapas e coordenadas, para que empreendedores, instituições e pesquisadores tenham acesso a essas informações e levem em conta a sensibilidade das diferentes praias no planejamento territorial. 

Há de fato uma complexidade especial no litoral do Espírito Santo, considerando que é uma das principais áreas de reprodução e alimentação de tartarugas marinhas e também é disputado para a instalação de empreendimentos de alto impacto ambiental do setor porto-petroleiro?

O Guia reforça o Espírito Santo como uma das principais áreas reprodutivas do país e que experimenta um processo de recolonização, com crescimento médio de 5% ao ano das desovas da tartaruga cabeçuda (Caretta caretta), indicando que elas podem estar recolonizando áreas próximas às que tradicionalmente concentram os sítios de reprodução.

Por outro lado, as praias, que já sofrem naturalmente por processos erosivos importantes, agora estão passando por um processo de erosão mais acentuado. Há uma corrente transversal à praia constantemente e os sedimentos se movimentam para o sul e para o norte o tempo todo. Também está havendo aumento do nível do mar, conforme mostra o último relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês). E há essa chamada vocação para portos, já que a plataforma continental capixaba é bastante estreita, sendo necessário dragar pouco para permitir a entrada de navios de grande calado.

Divulgação/Fundação Projeto Tamar

Como o Guia pode proteger ambiental e socialmente a costa capixaba dos impactos de grandes projetos de portos e empreendimentos de energia? Já houve o caso do Manabi.

O Espírito Santo tem, além de negócios ligados a áreas portuária e de petróleo e gás, uma vocação turística, o que é, de certa forma, antagônico. Todo esse potencial pressiona a costa e área marinha, com projetos de desenvolvimento como portos, condomínios, hotéis, resorts, pousadas, sem contar o turismo sazonal de verão com suas atividades, entre outros que pressionam sobremaneira as praias e orla.

Temos no Centro Tamar/ICMBio uma equipe técnica que analisa cada empreendimento na orla que venha impactar as áreas consideradas importantes para a conservação das tartarugas marinhas e o posicionamento técnico tem sido extremamente qualificado no sentido de avaliar, negar, de pedir estudos complementares ou de elencar um rol de condicionantes que devem ser atendidas para mitigar os efeitos, isso projeto a projeto.

O porto da Manabi, em Linhares, foi um dos que negamos tecnicamente e o Ibama acatou, em 2015, pois a localização proposta se situava no meio de uma área prioritária e os impactos seriam consideráveis, em vários quilômetros do litoral, mesmo com as medidas mitigadoras apresentadas. Além de impactar as tartarugas marinhas, geraria uma erosão acentuada ao longo da linha de costa, frente às comunidades, e restringiria as áreas de pesca, além de descaracterizar um dos litorais mais preservados do Estado.

O que podemos dizer é que a partir desse lançamento continuaremos todo um trabalho, como foi feito com a 1ª edição, de interlocução com órgãos federais, estaduais e municipais de meio ambiente ao longo da costa brasileira, mostrando o Guia e dialogando, pois quem licencia são o Ibama no nível federal – grandes empreendimentos de impactos nacionais – e estados e municípios nas obras com impactos estaduais e municipais, respectivamente.

O processo é sempre de diálogo, aproximação, convencimento técnico sobre a importância desses órgãos licenciadores agregarem cada vez mais nossas recomendações técnicas nas licenças ambientais. Podemos dizer que esse processo está cada dia mais frutífero. Estamos sendo consultados em escala crescente e nossos posicionamentos técnicos sendo agregados às licenças.

O rito do licenciamento envolve a emissão de três licenças: licença prévia (LP), de instalação (LI) e de operação (LO). A primeira atesta a viabilidade ambiental do empreendimento, a segunda autoriza início de obras propriamente dito (segundo cronograma definido) e a terceira autoriza o início da operação de um empreendimento (porto, usina termelétrica, etc). Esperamos com esse Guia contribuir nas três fases, de alternativas locacionais, de preparação dos projetos e de acompanhamento das instalações e operações.

O Guia se baseia no conceito de espécie guarda-chuva para a tartaruga marinha?

O Guia é voltado para a prevenção e mitigação de impactos às tartarugas marinhas e aos habitats dos quais elas dependem nas várias fases do seu ciclo de vida, pelos diversos tipos de empreendimentos propostos para a linha de costa e espaços oceânicos. A expressão ‘espécie bandeira’ e “espécie guarda-chuva’ remonta aos anos 1980, quando importantes projetos focados em espécies surgiram, como, no Brasil, os projetos Peixe-boi, Tamar, Baleia Jubarte e Albatroz. 

A estratégia era levar à sociedade informações sobre como estava o estado de conservação de diferentes espécies que, por serem “carismáticas” e assim foram chamadas, atraíam mais a sociedade para os movimentos de conservação da natureza. Especialmente quando se trata de espécies migratórias como as tartarugas marinhas, que utilizam diversos ambientes no ciclo de vida como praias, recifes de coral e ilhas oceânicas, o afeto e carinho das pessoas por essas espécies contribui para a conservação do ambiente como um todo.

Uma restrição a um empreendimento ou a criação de uma unidade de conservação para proteger as tartarugas marinhas, por exemplo, beneficiam todos os organismos, daí a origem dos termos “bandeira” ou “guarda-chuva”.

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